quinta-feira, 12 de março de 2009

Comme la vague


Era por volta de oito horas da noite quando o mundo acabou. Maria viu uma réstia de luz cruzar a janela. Feito serenata. A lua estava cheia de beirar de prata os olhos dela. Amendoados, escorridos, que nem melaço de cana recém saído da caldeira. Seus olhos eram fartos e fixos. Um mundo não acaba sem que seja removido um ponto qualquer de sustentação. Houve prenúncios. Estava agitada, assim como o mar. Seus cabelos suspendiam-se arredios, acima da cabeça, tomando a forma de algas enleadas a conchas e pedras. Os fios eram enrolados até quebrarem, um a um. Ela abria e fechava as pálpebras em movimentos contínuos. Suas mãos apertavam à outra, comprimiam os dedos, dobrava-os, até ouvir estalos. Um pedaço de lábio era repetidamente mordido e, e em seguida, experimentado com a ponta da língua. Insônia no quarto dela. Acordes musicais simulavam brincadeiras de fazer dançar o corpo na cama. A voz rouca de Gainsbourg fazia dueto com Jane Birkin

“- Je t'aime je t'aime Oh oui je t'aime. - Moi non plus - Oh mon amour. Tu es la vague, moi l'île nue. Tu vas, tu vas et tu viens. Entre mes reins. Tu vas et tu viens. Entre mes reins. Et je te rejoins.”

A lembrança da mão dele enlaçando suas costas um pouco nuas. O lábio deslizando na orelha em segredo a melodia: eu te detenho. As coxas comprimiam-se insones. Seu ventre se movia até alcançar um lugar de dentro. Achar o ponto, soltar, reter, sem parar. As pernas buscavam um lugar tocado pelo movimento. Calor no corpo dela. A morte é uma presença que emite sinais. Embora se avizinhe como rumor de águas à deriva, em curso de enchente. Maria seguiu a velocidade da luz, mesmo cega. Como já foi dito, o ponteiro do relógio devia marcar umas oito horas de noite. Todos na casa assistiam à novela “Selva de Pedra”. Por tal razão ela recorda o horário em que o mundo parou. Um suor quente, seco, fazia brasa na pele. Em cada lugar, um coração pulsava desenfreado. Ela alcançou o ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto. Assistiu, sem precisar de olhos para ver, uma explosão espalhar-se para além do seu corpo. Imaterial e nítida. Gritando uma descoberta. Foi quando a mãe bradou: essa menina morreu foi? E Maria respondeu – Morri, mas já passou. Deitou- se aninhada, com a respiração abrandada e um sorriso desenhado no canto da boca. De ser mulher.

23 comentários:

  1. Cara Glória, poeta de sempre da prosa de tudo.

    Serei estruturalista (ao menos tentarei, já que normalmente sou caótico):

    1º) "Um mundo não acaba sem que seja removido um ponto qualquer de sustentação."

    Comentário: Apesar de nós sermos sustentados pelo insustentável e que mesmo esse ponto de sustentação tenha de ser removido para que o mundo acabe, quando deixamos de saber o que falar acerca disso que nos rodeia, é que o mundo acaba. E por quê? Porque passamos a sentir.

    2º) "O lábio deslizando na orelha em segredo a melodia: eu te detenho."

    Comentário: Passando a sentir, o amor é detenção, com toda certeza. Já a paixão é regime semi-aberto. Podemos dizer "eu te fome" como correlato de "eu te amo" sem qualquer problema. Imagine só: "eu te fome assim como tu me fome e tu me fome assim como eu te fome". Sem conjugar nem nada: assim cru mesmo. Por isso o sexo está tanto para o amor quanto para a paixão na fome das próprias vísceras que o ventre esconde e torna sensuais. No mais, é fome e só. Daí a ausência de conjugação. No mais, carne e ossos.

    3º) "Ela alcançou o ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto."

    Comentário: Isso é um orgasmo.
    Se para o mundo acabar é necessário que algo perca a sustentação, a perda da sustentação se dá no ápice do prazer, quando a boca prediz as vogais do gozo e nada mais. Por isso a ausência da palavra e por isso a fome. Sobra o sentir.

    4º) "Deitou- se aninhada, com a respiração abrandada e um sorriso desenhado no canto da boca. De ser mulher."

    Comentário: E aqui, finalmente, está você.

    OBS.: Apesar disso, como já falei outras vezes, minha cara Glória, és mais fêmea que mulher, e é isso que me encanta na sua escrita.

    Um beijo deste moço do sul.

    ResponderExcluir
  2. Caramba!! Que descricão perfeita! Quem precisa de visão pra sentir essa explosão?

    Arrepios na alma Glória. Concordo com Eduardo, vc é encantadora no modo de escrever.
    Linda.

    À propósito, amei o poema do Rio, amei viu? Obrigada por compatilhar com a gente.

    ResponderExcluir
  3. O que senti ao ler ??? senti tudo que Maria sentiu...intenso e belo...
    ps: eu amo essa música do Serge Gainsbourg e Jane Birkin...perfeita.


    Adoro suas escritas.
    vou voltar com calma para ler o post anterior.

    bjus
    e um bom dia

    ResponderExcluir
  4. A intensidade da escrita é tamanha quanto a de Maria. Poucos momentos são sentidos nessa amplitude; ainda mais raros são aqueles que o tranmitem por palavras. Excelente!
    Beijo querida!

    ResponderExcluir
  5. Uau!!

    "E o mundo não se acabou" (parafraseando Luís Valente).

    Já li algumas descrições acerca do orgasmo. Mas nenhuma tão delicada e intensa como a sua ;-))

    É preciso morrer um pouquinho para se viver um bocadão, não é?

    Beijo.

    ResponderExcluir
  6. Morrer pra lembrar e esquecer pra lembrar e viver

    ResponderExcluir
  7. ainda bem que vc psico-grafa pra nós. eu que não queria perder uam amaravilha destas!

    que bela prosa, glória :)

    ResponderExcluir
  8. Espetacular!!!
    Passar por aqui é sempre um momento de prazer.
    E essa leitura, em especial, deu até para sentir esse "ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto."
    Fico a refletir, com "um sorriso desenhado no canto da boca", como é grante a tua inspiração!
    Obrigada por nos presentear com teus escritos.

    ResponderExcluir
  9. Um sorriso leve brotou após a leitura. Um sorriso de satisfação por encontrar um texto tão lindo e cheio de sensualidade. Adoro teus textos.
    Beijo grande grande
    Carpe Diem!!!

    ResponderExcluir
  10. Ai, Glória!...

    Adoro os seus comentários. Eles me fazem feliz! Além do mais, você escreve lindamente. A gente não consegue parar de ler.

    Um beijãooooo.

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

    ResponderExcluir
  11. "E o mundo n se acabou"........amei o texto que delícia ler esse blog sempre...

    ResponderExcluir
  12. Glória,
    a intensidade de um orgasmo contada magnificamente através das suas palavras esculpidas de forma primorosa.
    A descoberta do prazer solitário..
    Vir aqui num final de sexta-feira foi um presente.
    Ler você dá até para acreditar que o mundo ainda tem jeito ! Sem exagero.
    A literatura aquece a alma. E a sua escrita me deixou mais " leve". Em paz.
    Linda a doce morte de Maria !

    ResponderExcluir
  13. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    ResponderExcluir
  14. Nós mulheres..

    se soubessem, se propagassem, se gritassem ao mundo sobre nossos encontros mais nossos (como esse possível descrito e não meramente inventado) isto tudo seria tão nosso que não se teriam fim nossas terras, nossas casas, estes abrigos todos seriam somente para nós e o mundo perderia a graça pq o que há nele de melhor é senão esta irradiação de força que sai de tudo e de nós mesmas, mas não queremos converter, sabemos das forças outras, queremos que elas convivam conosco e unam-se a nós...
    sabemos da força de nosso gozo, de nosso exagero, de nós mesmas, preferem que morramos a concluir que saibamos disto, e continuamos deixando que o ar nos atravesse assim como o delírio e os acordes, só queremos a força deste tipo de encontro e de outros, também, e a leveza de nossos seres. Somos incansáveis e somos cheias de nadegas, de seios e como somos lindas, mas lindas que nós impossível.
    Nada nos mobiliza mais que apenas sentirmos e sentirmos o que somos.

    Somos dos suspiros solitários e somos de nós mesmas. Somos daquilo que se soma e se soma. Múltiplicamos assim. Invadimos e cada vez mais.

    Ser igual ao ventre é desde dele saber o que é mais seu: ser dele e ser ele.

    Somos ventre e damos luz, desde a descoberta a seu jus.

    ResponderExcluir
  15. Gloria, me gustó mucho el texto, un placer leerte. Mucha intensidad en la narrativa.
    Un beso

    ResponderExcluir
  16. Vida(...),
    não para de passar.
    enorme loucura,
    festivais sujeitos a serem reais.

    ResponderExcluir
  17. Gloria,

    Você escreve bonito...
    Faz poesia...
    Que sorte a minha ter passado por aqui !

    Parabéns !

    Quando puder visite meu blog também :

    http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

    Beijo,

    Solange Maia

    ResponderExcluir
  18. obrigada pela visita a nosso blog. tenha um suave fim de semana!
    bj
    salete maria

    p.s:
    seu blog é simplemente demais!!!1

    ResponderExcluir
  19. Tudo o que se comenta perde a essência primitiva que é o sentir.
    Nada a analisar em seus textos (crônicas, prosa-poética) e tanta vontade de tanto a dizer: São fortes, densos, femininos no mais alto grau que a delicadeza alcança, sensiveis e sensitivos. São sensuais e são doces...
    Adorei tudo o que li e voltarei com mais calma.
    Abraços
    Rossana

    ResponderExcluir
  20. WOW!!!
    Eu vi esse filme.
    Mais ou menos na mesma época.
    E o revia várias vezes em noites e dias de secreto idílio com a descoberta do prazer. "Da dor e delícia" que é ser mulher.
    Os ponteiros do relógio marcavam 11 anos.
    Lindo
    Marie

    ResponderExcluir

Ventanias