quarta-feira, 18 de março de 2009

Oh pedaço de mim”, oh metade que fala de mim




Eu tenho retido um grito sobre você. Nunca pude dizer do rasgo que me causou esse nascimento ao contrário. Essa canção de ninar presa na garganta. Pressenti que você partiria sem sequer chorar a primeira respiração. Eu preparei panos bordados de borboleta para você, embora meus dedos costurassem vidas tortas. Embora, meu choro de menina ainda se dirigisse para detrás das portas. Eu sei. Você me cresceria e eu abriria janelas para ver passar o tempo de nós duas. Que medo te impediu de ficar aqui? Eu era uma menina esperta. Sabia dos esconderijos que vedariam a aparição de fantasmas e a invasão dos monstros da noite. Eu nunca te diria que eles não existem. Eu os ouço, a cada madrugada, espreitando o sono dos que perderam algo precioso. Dos que se sentem partidos. Eu possuía senhas e ainda as carrego comigo até hoje. Nunca se sabe não é Raquel? Para que elas servem, as senhas? Para que algo dê passagem e não te conseguiria dizer mais nada. Eu me disfarço de mim mesma, brincaríamos de personagens. Uma mulher precisa de muitas peles. Poderia ter te conduzido no meu colo e nos salvado. Eu tinha um avião a nossa disposição. Nem te mostrei minha cidade em miniatura, toda feita de papelão e imaginação. Era povoada. Eu guardei minhas bonecas para te dar, com roupinhas costuradas na agulha e linha. Elas iriam te receber de braços abertos mesmo você sendo minha. Essa sua vi(n)da sem chegada deixou uma parte de mim exilada. Eu te digo, essa mulher que escreve, espera ainda essa outra que nunca chegará. Não nos salvaremos e é essa a condição de todas nós. Eu fui tecendo um destino ao que te falta, ao que me falta em cada lugar por onde passo e me permitem fazer nascerem novas escrituras. Desse modo, me acompanhas e eu te faço falar. No meu colo tu dormes e eu amanheço de asas abertas. Não temos nada a perder. Somos pequenos pedaços de palavras que voam como flechas. Arqueiros de um deus sem nome. Eu te carrego, tu me levas e nos deixamos ir. Enlaçadas. Até o ponto mais cego da visão. O infinito.


para Raquel, que hoje teria 30 anos

28 comentários:

  1. Ah, querida Glória, a saudade é um sentimento tão intenso e doloroso. Ainda mais quando alguém se vai, assim, sem o menos entendimento. Sempre fica a pergunta inquietante: por quê? A dor nunca passa. A lembraça nunca morre. E uma esperança impossível de ter só mais um abraço!


    TExto lindo, como sempre!

    Meu beijo!

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  2. Meu Deus, vc é uma escritora! Que lindo isso! Mas gente, eu só falo isso qd venho aqui, "mas será o benedito??" :) como dizia mamae...

    É que, vc me emociona Glória.

    E como disse Tainá, ooohh sentimentozinho que dói intensamente esse saudade...

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  3. De fato, Glória, há coisas que não passam (= . mas a adélia prado tem uma frase que amo tanto! a deixo (a frase) para vc e sua saudade bonita:

    "O QUE A MEMÓRIA AMA, FICA ETERNO".

    Um beijão! =*

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  4. Lindo texto. A tristeza de quem perdeu a flor antes da Primavera...
    Obrigado por teres passado lá por "casa". Vou "seguir" essa tristeza e tudo o que daí vier.
    Beijo!

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  5. Me arrepiei de emoção. Já estava encantada com a forma de escrever, e no final quase choro.

    Emocionante!

    Você tem algum livro publicado, ou já encaminhado?

    adoro seus textos, sua forma de escrever.

    As vezes ficamos sem entender.

    bom dia!

    (eu aqui e vc lá. rsrsr)

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  6. O não nascer é um próprio resnacer de uma vida. Você trasnformou-se em um sonho inatingível que infinda-se nas palavras docemente direcionadas. Tudo há um porquê, até quando não sabemos. Por que?
    Bons dias pra vc e, em sendo da cidade que festeja São José, bom feriado também.

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  7. Uma viagem rumo ao Infinito Particular?

    Imperdível.

    Ainda mais se envolve agulha e linha [fio].

    Beijo.

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  8. é só sentidos, glória. e que poética. poetando bruto e lindo :)

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  9. É um texto forte e carregado de sentimentos sem, contudo, cair no sentimentalismo piegas, graças ao talento da escritora.
    Parabéns, Glória.
    Beijos

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  10. Lembrou um filho meu q não vingou.

    Bonito texto.

    Bjos com ternura.

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  11. Nesse momento uma lágrima escorre dos meus olhos e não há muito a dizer, a não ser que que você é primorosa mesmo escrevendo a dor.
    Abraços

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  12. Oi Glória! Estou retribuindo a visita, por favor, volte sempre para ler algumas besteiras. ;)

    E, infelizmente, conheço esse seu sentimento. Perdi um irmão e vejo nos olhos da minha mãe como ela nunca esquece dele. Nunca o conheci, mas sinto saudade dele. Pode isso?

    Vou te adicionar os favoritos, ok?
    Beijos

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  13. Mais um encontro, Glória.
    Temos mais em comum do que imaginamos, mesmo, impressionante.
    Bj minha linda.

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  14. eu chorei!

    beijos de um filho que vingou!

    Te amo.

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  15. Glória!!

    Distinto. Maravilhosamente o mais puro dos sentimentos. Estou anestesiado.

    Aloha!!

    Hod.

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  16. Desta vez não sei o que dizer, senão que vou lembrar-me das lágrimas que derramei nestes últimos instantes. Elas vieram junto com a compreensão mínima que tinha sobre o que seria não ver vir ao mundo quem viria. O que e passou agora há pouco desfez em mim qualquer amenidade que há nisso. Não se enxerga mais da mesma forma ao saber de Raquel.

    Raquel veio de alguma forma salvar muitos.

    Beijo doce pra esta amiga do peito.
    Beijo

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  17. Glória: hoje o verbo me esganou. Espremeu minha garganta e estou vazio. Amanhã falo da beleza que aqui vi. E se amanhã é hoje, porque são duas da manhã, hoje ainda falo da beleza que aqui vi. Mas continuo com a garganta espremida: de cada lado um verbo, nuclear feito dever e ser. Não sei se isso enseja perdão, mas é só isso que sei. Não basta apenas existir quando essas coisas acontecem, não basta apenas falar, comentar seja lá o que for quando essas coisas acontecem. Por isso fica só meu beijo de carinho. E amanhã algo, como se diz por aqui, "de fundamento", já que acabei de me olhar no espelho e vi a face da loucura. Culpa de quem? Do verbo, esse que me esganou.

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  18. "Eu te digo, essa mulher que escreve, espera ainda essa outra que nunca chegará. Não nos salvaremos e é essa a condição de todas nós." É a falta que nos compõem, Glória. Para além dela, pode até existir a ilusão de plenitude, "o olho que tudo vê", como quis um certo filme que seguiu a moda voyuer dos nossos dias. Entretanto, acaso ela exista, conforme recém falado, não passa de ilusão, visto que é a falta que nos compõem, é a história/língua que nos é, restando-nos quando mundo a fraternidade com o outro para suprir essa angústia intensa de viver como se sonha - ou seja: só, como disse o Joseph Conrad. Por isso reside em você esse barco que nunca atraca, como se o porto, na voz do Pessoa, fosse a própria saudade petrificada, vista de longe, de um alto-mar sem qualquer chão ou referências e portanto prenhe de pura falta. Contudo, direcionando essa lacuna do que se é em direção a ternura que as próprias palavras francamente colocadas ecoam, temos, de certo modo, ao menos um eco nesse vazio, uma frase espiralada que perpassa com intenção de infinito essa coisa que nos compõem de cima abaixo, já que somos onde não estamos, visto que até mesmo nossa retórica repousa no silêncio. E como poderia ser o contrário? É o silêncio que faz a palavra assim como é a saudade, o sentir falta de alguém ou algo, que gera aquele abraço, aquele beijo, aquela noite e aquela manhã que passamos feito felinos de um lado ao outro da cama ou esperando durante horas a namorada que nunca vimos em uma rodoviária do interior do Brasil. Mas quando não há como concretizar essa saudade na raiz da própria pele, quando a própria realidade se impõem mordaz com sua vivacidade à Sísifo, lembrando-nos toda hora da absurdidade e da finitude de todos nós, resta-nos cantar o pedaço que nos falta, pois, como bem disse o Chico Buarque, "a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu". Por isso esse seu texto, Glória, ao menos na lente que daqui vê você, que tenta ser olho mas chora ao tentar ser olho e por isso mesmo é lente, fala justamente disso: da falta, tanto real quanto imaginária ou simbólica, que nos faz ser o que somos, já que é do vazio que provém a palavra e não o contrário, assim como um artesão molda seu jarro em torno de um vão, de uma falta, como bem disse Heidegger. Com as dobras, nacos de tempo/espaço ao contrário, o mesmo ocorre, não sendo elas nada mais do que uma tentativa de suprir essa lacuna que temos de preencher seja com sentimentos ou com ações para desaguar na própria terra que nos espera, muito embora jamais sejamos corredeira para além do que criamos. E com minha fala estou tentando, por óbvio, racionalizar a sua fala e esconder a emoção que senti ao ler o seu texto, visto que do contrário nem palavras teria a dizer, já que a própria ausência do verbo, ontem tão mordaz em minha garganta, faria com que tudo ficasse preso entre a laringe e o peito e tornasse toda minha vida rouca no dia de hoje, traçando uma outra falta - mas uma falta prenhe de beleza e de poesa. Um beijo nada protocolar, Glória.

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  19. Glorinha, agora quero apenas o silêncio. Deixar a lágrima escorrer intranquila. Te sinto tão próxima do que sou que não me engano disso. Silêncio e premonições...
    Abraço
    Carpe Diem!

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  20. Glória...

    Hoje silencio.
    Calo em respeito a este amor infinito, que dói em você, dói em mim, dói em todas as mães do mundo.

    Envio-te meu amor.
    E meu mais profundo respeito.


    Beijo carinhoso,

    Solange

    http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

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  21. Glória!

    Você já se tornou uma das minhas melhores amigas (pois está sempre por perto, me arrancando sorrisos).

    Obrigado pelas palavras suaves de carinho. Eu fico tão feliz com elas...

    O seu texto, como sempre, maravilhoso, maravilhoso! Parabéns!

    Te adooro.

    Um beijãoooo.

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  22. Aloha Glória! Dia após dia nutro minhalma, com as palavras vitaminadas e nuâncias exuberantes de suas linhas. Gosto muito de ler você!

    Feliz Dia do Blogueiro!!

    Abraços!!

    Aloha Hod.

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  23. Que texto mais sublime.
    Vim vê-lo a partir do filho que gerou.
    O texto da Rossana.
    Mulheres mágicas.
    Raquel é eterna.
    Lindo
    Marie

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  24. Contentamento recíproco.
    Grata por compreender que eu precisava escrever abusando da beleza de seus escritos...
    Grata ainda mais pelo entendimento dos meus...
    CUMPLICIDADE é mesmo o maior dos presentes.
    Um grande beijo.

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  25. Puxa...

    tem frases que, de tão belas, a gente gostaria de ter escrito, como essa: "Eu preparei panos bordados de borboleta para você"...

    lindo.

    E, lembrou-me minha avó, que se chamava Raquel...

    bjs

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  26. Das coisas que não passam. Sentimentos que ficam e amadurecem. Raquel é luz e inspira as palavras-flecha mais bonitas de saudades.

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Ventanias