domingo, 20 de setembro de 2009

Amor é imaginação


Se não chegas nem pelo sonho, por que insisto em te imaginar?”
Cecília Meireles


Era bem cedo, quando ele cruzou a porta. Não anunciou o nome e muito menos o motivo da repentina visita. Já foi entrando e recorrendo a quem lá estivesse: é aqui que vive a poeta? Ozanira, Joana de nascimento, tinha o dever sacramentado de interceptar a entrada de estranhos. Dona Cecília não podia escrever nenhuma linha, dizia a moça – com aquele fervilhão de gente atrás de falar com ela. Para chegar à escritora, primeiro tinha que tirar prosa com Ozanira. Ela era a dona do tempo. Escrever é um modo de se abster das horas. Naquele dia, Cecília despertou com uma réstia de sol perfurando a brecha da cortina e fazendo luz nos olhos dela. Imaginou atraso e se lançou fora da cama, em sobressalto. Essa mania eterna de correr atrás de "nãoseiquê" mesmo que o dia escorra em abundância. Imediatamente, o relógio ostenta a hora certa: sete da manhã. Quase brincadeira de mau gosto. Esperou por toda a semana esse instante de não ter obrigação. E acorda, exatamente pontual. Imaginou de pronto que sol é do gênero masculino, diferente da lua. Que ele rasga o dia alumiando tudo, furando a noite, não deixando um recanto permanecer apagado. E sem que qualquer coisa a demovesse da idéia, se pôs e esbravejar o astro e seus inconvenientes raios. Arrogante! Essa foi a sua mais leve palavra. Esse cerzir da vida leva um pedaço para, logo em seguida, estampar compensações. O aroma do café trouxe lembranças de menina. A fazenda Cachoeirinha, o mugido das vacas no curral e o chocalho das cabras no terreiro. Toalha de linho e bem ao lado da xícara de Cecília, a tapioca branquinha recheada com queijo coalho. Um estômago tem fome de generosidades postas à mesa. Ela toma o primeiro gole de café e sorri. Havia sido severa com o sol. Afinal de contas, fazer despertar pode ser uma forma de amar. Esparramou-se no sofá e deixou o tempo passar, descansado. Quando ele chega, o desconhecido, a mulher já ganhou ternuras. Aqui mora a poeta? Cecília se agita e, curiosa, responde: aqui mora poesia. E você, quem é? Ele murmura, por saber que cruzou a casa como um raio, e a faz recordar - meu nome é Mário. E evoca o motivo de um amor nunca dito. Eu sei da tua timidez. Não temas: “o luar é a luz do sol que está dormindo”.[i] Cecília se remexe no sofá, balbucia o nome do poeta e concede a esse amor o sono infinito. Ozinira, do lugar dela pensa alto – essa Dona Cecília escreve coisas no pensamento.


[i] “Verso avulso” de Mário Quintana

11 comentários:

  1. Eu li, Glória. Não te visito muitas vezes. Mas vou fazer disso um hábito dentro do tempo que tenho.

    E você criou tantas imagens que fiquei feliz. É bom ler algo bem escrito, ver talento. Isso sim é generosidade.

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  2. Leitura sempre leve e deliciosa.
    A pergunta inicial de Cecília me fez refletir sobre o sonho, o criar, imaginar... É lá, somente lá que tudo é possível...
    Com a cabeça sobre o travesseiro, outra vida, outros países, amores possíveis, palavras não ditas, beijos não dados, "adeus" calado.

    Vou continuar sonhando, Dona Cecília...rs

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  3. afee glória, que coisa linda!!! liiiindo! (:

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  4. Estou esperando...
    Afiiii ainda não desestir.

    Bjus menina linda.

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  5. Cecilia e Glória...
    sempre um encanto! ^^

    um bjo flor!

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  6. os poetas são uns tudos egocêntricos...
    e quem pode viver sem eles?

    as imagens que vc me sugere estão sempre tão proximas...

    um beijo :)

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  7. Ah! Ela chegou-me,
    e pediu para não sonhar,
    mas eu insisti em sonhar
    pois foi como tudo começou
    agora que estou em seus olhos,
    sonho mais alto,
    com o amor.
    Qual de nós seria a Cecília,
    ela, a cigarra ou eu a farfalla,
    que importa...
    Quando nos olhamos in pensamento,
    flutuamos...pra bem perto.
    Todas estas delicias que colocas a mesa
    Adoçam mais ainda este romance, dá todo o aroma de encontro desejado e já por muito adiado.

    Belo este texto, sinto-me apanhada.
    Bjinhos e uma semana com aroma de café moído a hora.

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  8. Existe coisa melhor do que o aroma do café e uma tapioca branquinha recheada com queijo coalho ?
    Só o amor. Ele rende prosa poética de dar nó no estômago.
    Beijão, Glória.

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  9. o amor é uma escolha, um chamado de longe... Gostei de seu espaço! Ah, já estou acompanhando-a, saia de trás da porta e acompanhe-me também... rsss ósculo/carlos http://carloscouto.blogspot.com/

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  10. É sempre bom ler uma boa litaratura, sabe essas coisas que tem poesia e torna a vida mais leve. Gostei desse cantinho e sempre que puder voltarei aqui.

    Beijos!!!

    Meg Macedo.

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Ventanias