domingo, 25 de março de 2012

O tiro



Sentou na sala de dentro. Lugar dos eventos raros e dos visitantes notáveis. Benedito do Feiticeiro em nada parecia com os homens de ternos impecáveis e sapatos lustrosos que, de quando em vez, abancavam-se na sala de estar. Ele vinha de um povoado com esse nome e que parece ter lhe caído muito bem.

O visitante da tarde vestia terno de linho azul surrado, portava um cinto com pelos de animal e chapéu de tipo sertanejo, com alto relevo nas abas e seis signos de Salomão, que nem o de Lampião. Tinha um lenço avermelhado no pescoço, sustentado por argolas de couro. Uma visão que parecia de filme ou de alguma personagem que fugira das páginas de livros de aventura. Isso porque nos idos da década de 70, a metrópole já era lugar de progresso. Benedito era de outro mundo. 

Na casa, todos foram avisados que não se aproximassem da visita. O final da ressalva vinha num tom quase inaudível: muuuuito perigoso. Procurado pela polícia, perseguido pelos inimigos. Pra’ que? Foi como dizer: menina, fica de vigília. Bem da portinhola do quarto espreitei a chegada do homem. Perigoso. Aquilo ficou ressoando como um estampido de tiro na imaginação, durante a semana que precedera a vinda do visitante. Parecia um conluio entre a vontade de ganhar o mundo e ser ali, mesmo na sala, atravessada por um choque animador. 

O homem do Feiticeiro, seguiu, em passos calmos o jardim antes de sentar na poltrona do canto direito. Tinha ares de animal atravessando a mata. Olhos duros, de presa fora da armadilha. Vi que carregava dois punhais e uma cartucheira enfileirada de balas. Cada uma delas aumentava o ritmo do meu cerco. Seguiu-o até a sala e me pus por detrás da cortina. Imóvel, como convém a uma mulher diante do inimigo. Na espera do dono da casa, ele foi acreditando-se seguro e baixando a guarda. Eu permanecia na tocaia, sem mexer um dedo. Vi o revólver descansando na mesa de centro, ao lado de uma estátua alva da Vênus de Milo. Pensei, é agora. Eu caçadora, ele a presa. Benedito cantarolou o “ Cheiro da Carolina” de Luiz Gonzaga e repeti para mim mesma: é agora. De mansinho, me arrastei para além da cortina, alcancei a arma e dei um tiro único em direção ao teto da sala. Vi Benedito correr sem rumo certo. E não se soube mais dele. 

Permaneci atônita e a casa também. A menina boazinha dissolveu-se numa única bala. Tinha treze anos. E seus olhos não dormiram mais fora da vigília. A cena prosseguiu em cada ato arriscado de esquivar o desejo, entre punhais e gatilhos. Aço e pólvora têm gosto de sangue e perigo. Que assim seja. As palavras armadas temem apenas o risco de esconder-se. Inimigo é o silêncio. E Benedito disso não sabia.

5 comentários:

  1. fiquei aqui pensando:
    quantos tiros calei, quantos gritei e quantos ainda terei que dar...
    tem textos que nos aprofundam nos medos e "coragens" futuras e pretéritas de meninas que ainda moram na alma de mulher...
    como sempre adorei

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  2. li dedos de glória a manejar os breuzinhos de letras a beijar o alvor e ser o tiro certeiro da guria e seus milagres e espantos de mulher... alinhaventos...

    beijos

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  3. Bom dia, adorei seu blog..
    Estou iniciando um blog e adoraria receber algumas dicas..
    Bjos

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  4. Que conto maravilhoso! Simplesmente uma delícia de ler. Estou encantado. Parabéns pelo conteúdo do blog. :)

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Ventanias