sábado, 22 de agosto de 2009

Eu abro a porta: um pedido mútuo de perdão



por que cresceste curuminha, assim depressa, estabanada, saíste maquiada dentro do meu vestido”
Chico Buarque

Ela soltou a mão. O vidro do carro subiu diante da cara espantada da menina. Fechada na solidão. O castigo por falar muito, por esconder-se para brincar, por deixar comida no prato. Ficar trancada no carro. Interromper o lugar de passar pode ser a forma mais rápida de se matar a coragem. Uma criança desconhece cancelas. Leva um tempo para que o abandono se torne nítido e mudo. Ela, de início, ficou aquietada. Na sua imaginação dos jogos de esconde-esconde, Maria acreditou que a mãe logo, logo voltaria. A feira engoliu a imagem da mãe em meio às barracas e ao vai-e-vem dos passantes. Lá fora, gente, muita gente. Os vidros fechados produziam a imagem de um filme mudo. Invertido. Dentro do carro havia apenas calor, o medo e um vácuo de palavras. A ausência faz barulho. Um nada se instaurou como fogo na alta temperatura do lugar fechado. Repentinamente, uma explosão devastadora de terror, sem lugar, sem nome tomou conta do corpo inteiro da menina. Não havia em volta dela qualquer coisa familiar, nem um movimento possível capaz de reter o desespero. Havia a possibilidade de um choro alardeado chegar aos olhos e ouvidos da mãe? Havia? Não. Esmurrar os vidros. Muito. Olhos de todas as espécies acercaram-se do carro. Uma multidão de desconhecidos fez ressoar para fora o choro mudo de Maria. Faltava ar, faltava fôlego. Uma mulher de cabelos longos e mãos de bondade, que nem as santas do colégio de freiras, roga calma. De fora do vidro, através de gestos, diz que um corpo pode sobreviver, mesmo que morra sozinho. Mesmo que uma criança tenha que entender, antecipadamente, a dor dos fios rompidos. Diante da incrédula multidão, surge a mãe de Maria. Tão cerceada e muda quanto a menina. Com uma diferença, parecia que ninguém se dava conta de seu fechamento, de ter sido castigada em silêncio. Todos os dias. Em volta do corpo da mãe, vidros suspensos parecem ter vedado seus transbordamentos, seu viço. É preciso um gesto que faça abrir as portas. Ela adentra o carro, senta e permanece muda. Até que a menina deite a cabeça em seu colo, banhada de suor e lágrimas. Até que a dor das duas seja uma. Até que a vida de cada uma siga outras rotas. "Se fosse permitido, eu reverteria o tempo". Abriria todas as janelas, que dão para dentro e para fora. E me permito, e te permito abrir entre nós essa porta de perdão. Amém.

domingo, 2 de agosto de 2009

A imensidão na torre




A paisagem desafia os limites da visão. Uma luz intensa, quase invasiva, derrama-se sob o traçado xadrez de uma fortaleza dos ventos. A mulher se encontra elevada, podendo ver mar e dunas, mangues banhados pelo fluxo e refluxo das marés, verdes confinados entre paredes e vias. O reinado da visibilidade. Sua torre ocupa o topo mais alto do planalto e alcança os quatro pontos cardiais da cidade que vagueia cega. Cada final de tarde, um sabiá, de canto melódico, pousa na torre e enuncia o tempo das asas e do vôo. Ela repete impulsivamente o mesmo movimento – toca o pescoço e tenta afrouxar o que restou das correntes. O lugar, por vezes, ainda é escuro e pesa. Lá fora, a claridade rasga o céu das manhãs. Uma existência trafega sob superfícies, entre abismos e pontes. Ao traspassar túneis, cavernas e lugares confinados Raquel vislumbra o que permanece. O tilintar do aço sendo afiado, o zumbido do frio e da fome e a chave do carcereiro entreabrindo passagens. Poderia ser de outra forma? O corpo guarda e preserva o raro, o sagrado. Mesmo perfurado, amarrado, forçado, amordaçado existe dentro dele um cômodo secreto que abriga o perdão, doses de ungüento e porções de encantamento. O deslizar da língua de Raul, o percorrer suave das gotas de água por entre os seios, sua desmedida ternura provocam na mulher um lastro de dor e paixão. A memória dá vida. O prazer guardado, retido abre passagem e afrouxa as correntes. Ela desperta. Abre a porta. É ele, o mouro temido, o guerreiro incansável e rude, de lábios grossos, mãos ásperas e certeiras que a conduz para além da escuridão. Uma mulher pode temer e esconder por toda uma vida suas agitações, estremecimentos e precipícios. Uma mulher pode se esconder. Daqui de cima Raúl aponta a direção dos ventos. Pequenos vestígios de asas crescem em meio a cicatrizes e marcas de correntes e cordas. Ela enxerga e move-se sob o lastro de luz. É dia. A moira entoa o canto livre do sabiá.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A nascente do encantamento: o mouro e a moira (parte três)




Silêncio. Daqui ouço os gemidos de Raquel e o arrastar das correntes. Um prazer em tom de lamento que alteia o som quando se instala o vácuo. Alguns fios podem compor uma forma de narrar história. Raul, mouro da dinastia Almorávida, chega a Península Ibérica trazido pelos ventos da ameaça de reconquista de Al-Andalus. Durante as cruzadas, protegido por seu elmo e armadura, Raul incorpora a alcunha de homem de ferro, o gigante. Não tinha cara, nem sabia do corpo. Restava uma dormência. O guerreiro havia tomado o lugar do homem. Suas mãos reconheciam apenas a superfície fria e sólida do escudo e o fino desenho da lança. Os braços eram talhados para movimentos de força, de gestos largos e firmes. Todos os sentidos do guerreiro se voltavam para uma única direção: o inimigo. Curiosamente, uma vida se conta mais pelos desvios de rota do que pelos itinerários traçados nos mapas. Na batalha de Zalaca, um confronto decisivo, Raul e seus guerreiros derrotam o Rei. Os mouros ocupam o palácio, assassinam seus guardiões e, inusitadamente, encontram no calabouço a princesa Raquel, filha primogênita do Rei. Assim como Raul, ela também vivia uma batalha entre mundos de limites tênues. Raquel havia sido acusada de feitiçaria e de uso de poderes obscuros. Ela detinha o poder de misturar os códigos entre mundos forçosamente cindidos.
Não havia armadura nem elmo capazes de inibir a correnteza que tinha sua nascente no corpo da feiticeira. Ela via para além dos escudos, das paredes grossas do castelo, dos limites do reino, das linhas que pareciam separar céu e terra. Carregava um desassossego povoado por seres de terras diversas e proferia um dialeto intraduzível no léxico local. A presença e o domínio dos mouros tornam-se ameaçadora não apenas devido a extorsão de riquezas e terras, mas pelo temor das crenças inspiradas na magia e em tudo aquilo que não se vê. A princesa vivia no limbo, presa entre dois mundos. Já pelos denominados bárbaros é tida como moira encantada. As lendas dizem que as moiras, donzelas de irresistível beleza e poder de sedução, podem ser confundidas com montes, florestas e rochedos.

É desprovido da proteção de ferro sobre o corpo, de anteparo por sobre os olhos que Raul fita Raquel. Um guerreiro sabe quando é atingido frontalmente. Logo, é tomado por um fogo devastador, que só acende, só ascende. Ele sabe que não mais alcança sua armadura. Rende-se ao corpo. Toma entre as mãos a pele branca da princesa e avança, até alcançar um ponto com desenho de infinito. Penetra a escura caverna. Raquel, a moira, guardiã dos locais de passagem, fonte selvagem da manifestação do sobrenatural ela, fêmea encantada, toma a mão do homem e o conduz ao interior da terra. Entorpecidos, para que nunca se quebre o encanto. Com seu pente de ouro, tocado aos fios longos dos cabelos negros da mulher, Raul quebra a corrente que separa os mundos e permanece.