terça-feira, 3 de março de 2009

Sentimental eu sou




O nome dele eu não lembro. Todos o chamavam de Teto. Era filho do dentista da casa do lado. Eu a filha do chefe da carteira agrícola do Banco do Brasil que acabara de chegar do Rio de Janeiro. As casas de fachada contínua nos traziam os risos, conversas, choros e segredos de lado de lá. Eu despertava com ecos de sua voz rouca pedindo o leite matinal. Ele era chorão e barulhento. Eu o conhecia através dos sons que atravessavam as paredes. As calçadas margeavam os finais de tarde. Numa delas, sentamos em cadeiras de balanço de vime alinhados numa cena familiar. A radiadora anunciava a próxima música e os olhos de minha mãe marejaram quando a voz do apresentador disse – como boas-vindas para a família que acaba de chegar, ouviremos Altemar Dutra. “Sentimental eu sou, eu sou demais, eu sei que sou assim porque assim ela me faz”. Foi quando escutei o grito costumeiro da vizinha quebrar o idílio do momento - esse menino me tira do sério. Era ele. Suas calças frouxas e pés descalços, a correria desenfreada, um jeito de passar o braço na testa e remover o suor, as maças do rosto tão vermelhas; tudo isso dizia do abismo entre os nossos oito anos. O meu vestido rodado, engomado, me fazia quase estática, uma boneca. Montado num cabo de vassoura ele percorria a calçada que nem vaqueiro tangendo o gado no mato. Eu não estava ali. Queria luz elétrica, os parquinhos de Copacabana, o cinema, os passeios de bonde e o mar brincando de molhar meus pés. Eu desconhecia as veredas do mato. Ele não quis saber, me puxou pela mão e disse - tu quer passear no meu cavalo, eu te levo na garupa. Eu podia muito bem ter lembrado o meu vestido todo armadinho de grude, do meu cabelo de franjinha definida e do sapato de verniz com uma meia bordadinha. Eu podia ter permanecido sentada. Ali eu desenhei o meu destino de mulher. Olhei para o vaqueiro, vi a velocidade do seu cavalo sem cela, nem rédeas, nem direção. Seus olhos verdes de bicho solto, bicho do mato, bicho tinhoso; me fiz correr léguas no dorso do seu cavalo. Eu me tornei a namorada do vaqueiro. Um dia, num passeio de Jipe, nas trilhas incertas do sertão, o meu pai na direção, as crianças atrás; ele passou as mãos por detrás das minhas costas. Tocou levemente as minhas e perguntou baixinho – quer casar comigo? Quando o pipoqueiro de Russas passava e anunciava – pipoca mineral de água e sal, ele corria em minha direção. Corria para evitar que a minha fome de pipoca, adiasse seus planos. Desenhava um olhar grave e me falava - vamos guardar o dinheiro para o nosso casamento. Foram cinco anos. O Teto apenas tocou minhas mãos e entrelaçou dedos com dedos. Apenas derramou seu olhar em correnteza bravia sobre os meus olhos tão atrapalhados e ávidos por luz. Ele me conduziu em seu cavalo indomável, eu aprendi a me deixar levar. Banhou meus pés de ternura e enlevo. Algumas vezes eu tomei a direção e o conduzi alinhado em minhas costas. Ele fechava os olhos e eu o arrebatava em desatino, ultrapassando cercas e matas fechadas. Um dia, fui embora a galope. Dividimos o dinheiro do nosso casamento num final de tarde chuvoso. Na radiadora tocava Rita Pavone, eu dançava em plena calçada, ia até o chão. Ele sabia do que eu era capaz, sempre soube e eu carrego até hoje essa intenção. Por isso, quando você me vê, imagina um cavalo em disparada. Sobe na cela da imaginação. Eu, indomável, te conduzirei. Você deitará tua cabeça em meus ombros, fechará os olhos e dirá: pode soltar as rédeas. E voaremos.

19 comentários:

  1. Lindo texto, minha querida. Estou tão sem tempo que só pude ler agora de madrugadinha.
    Beijos
    Carpe Diem!!!

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  2. O amor da infancia, o verdadeiro amor...com imaginação, com curiosidades, com mais certezas do que incertezas...esse é o verdadeiro amor, sem rédeas.

    Você nos mostrou claramente o que acontece com muitos de nós, nessa infancia perdida...

    bjussss
    tenha uma linda semana

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  3. Menina gloria, viajei, viu? Bom texto.

    Bjos.

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  4. Muito lindo! Adoro conhecer cenas de infâncias e ainda mais com esse romantismo: puro, ingênuo, mas nem tanto... Adorei! Só vc mesmo, gloriosa! Bjos

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  5. Glória você escreve muito bem. Consegui ler o texto numa só respiração. Galopei no cavalo, senti as emoções e voei...


    Lindo. Adorei.

    bjs

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  6. Amei suas palavras no "Tecituras da Infância". Essa Luciana é a "Quixadá" :)! Bjo

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  7. Que lembrança prazeirosamente revivida. Senti o cheiro do mato molhado invadir-me o coração. Parabéns pelo texto! Quanto a indagação, vendo-se por aspectos coincidentes de nomes e lugares, volto a indagação, desta feita, com mais ênfase: nos conhecemos?

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  8. Ei, Glória!

    Saiba que é um prazer imenso tê-la em meu blog. Seus comentários sempre me fazem muito feliz! Que legal que eu te deixo intrigada. Mas não tem segredo, não! (rsrsrsrs) Você também escreve lindamente, acredite! Tô lendo tudo!

    Um beijooo estalado.

    Te espero lá, viu!? Até.

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  9. Glória,
    seu texto tem gosto de leite. Cheiro de mato. E nos dá uma sensação de liberdade. Imaginei-me galopando nesse cavalo. Através da sua escrita, você consegue nos fazer viajar com lindas figuras de linguagem.
    Beijão

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  10. "Ele fechava os olhos e eu o arrebatava em desatino, ultrapassando cercas e matas fechadas." Não há o que falar mais do que isso. Não há jorro de vida que suporte a poesia destilada da pele. Não há bebida que nos embriague mais que a palavra dita e mordida na mudez dos lábios que beijam. E se um cavalo da infância galopa o campo de quaisquer dos teus sonhos, não é porque levas alguém consigo: é porque todos estão contigo. É porque, poeta, tuas palavras estão para além da vida porque elas são a própria vida em palavras. E mesmo quando deixares de existir, seja nessa Fortaleza que habitas, seja no trailer com o qual atravessarás a América Latina como uma Che Guevara de cabelos feitos de conchas, essas palavras permanecerão trazendo no dorso os poros de quem quer ser mais do que mero humano, mais do que mera entidade biológica lançada no mundo e sendo para a morte, como queria o Heidegger - aquele poeta-filósofo que viu clareiras na Floresta Negra em meio à Segunda Guerra. Quando deixares de existir e o eco de todos os teus dizeres esvoaçar como o canto de Caruso para uma platéia que inexiste, assim como gemem os doentes e aqueles que não gozaram, permanecerás terna em cada linha, permanecerás quente em cada vírgula, ainda que o meu amanhecer tenha vento fresco e traga vozes de galo que desconheço, pois só os galos tem o poder de calar os cães. Por isso tudo, poeta, talvez o menino que cortou o idílio seja justamente a vida gritando a fêmea que és. Talvez da quebra é que nos façamos assim como da fenda da nossa mãe surgimos para o mundo, seja lançados ou não. Da boca ao pó, o que nos faz poetas é um beijo solitário, abraçando a nudez da cama vazia como quem esqueceu que existe o travesseiro e por isso mesmo rabiscando o branco das laudas, esse prisma de todas as luzes. E é por isso que tuas palavras me tocam, poeta. E é por isso que tuas palavras me quedam inerte em um abismo de águas que desconheço mas que sei vivas. Reuniões? Viveres burocráticos? Que o sejam, ora pois! Afinal, é necessário comer e ter algum conforto, não é? Mas me convidas pra dar uma volta no teu futuro trailer? Ficarei no aguardo. E talvez somente então decifraremos o segredo dos Incas. Um beijo de olheiras e melancolias, minha querida.

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  11. Que lindo esse texto!
    Mexeu com minhas vontades...
    "aprendi a me deixar levar." - Quero sentir exatamente isso. Que ser mar levado por uma brisa mansa e bonita. A-mar.

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  12. Ai, Glória!

    Você escreve coisas lindas. O amor realmente serve de assunto para muitos capítulos de nossas vidas.

    "amar é saber que as portas são ilusões dos corpos. não estamos trancados, nem seguros."

    Lindo esse trecho.

    Obrigado mais uma vez.

    Um beijãooo.

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  13. Gente, que coisa linda, eu tava lendo e chorando, sério, porque é mt lindo isso que vc escreveu. Sabe qd vc lê e vê tudo na sua frente? as imagens, o movimento, as cores, até o cheiros, vc me proporcionou isso agora.
    Incrível!! Que lindo isso tudo.

    ahhh... vou virar fã!

    obrigada pela visita no blog, que "era" entre mae e filha, agora a filha pegou tbm suas próprias rédeas, assim como vc pequenina fez.. ela tem seu próprio cantinho, mas a mamae espera, assim como seu cavaleiro fez :)

    um bj e vou te linkar, viu?? Posso né?

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  14. Esses textos de Glória valem por horas de análise! Em que momento me fiz mulher? Ou ainda sou uma menina? Ainda não me acostumo que me chamem de senhora e prefiro não saber se é a aparencia ou a aliança...tenho envelhecido? Lendo Glória me lembro de que somos três, e somos muitas mais...voando, mergulhando, a galope... em movimento sempre!

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  15. Muito obrigado, Glória!

    Você, como sempre, fazendo poesia e encantando a gente com seus belos comentários!

    Toda vez que te vejo por lá, na minha torre, eu fico tão feliz, mas tão feliz!...

    Te espero mais e mais!

    Beijãooo. Ótimo fim de semana! Aproveiteee!

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  16. Tuas histórias são pura viagem.
    Deliciosa imaginação e memória.
    Lindo
    Marie

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  17. Um blogue bem pensado, com conteúdo instigante para quem gosta de poesia e sutilezas. Voltarei mais vezes. Parabéns.

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  18. UMA DELÍCIA LER VOCÊ, GLÓRIA ... ADOREI TER CHEGADO AQUI ... BEIJO

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Ventanias