domingo, 20 de junho de 2010
A Sombra
“Um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas”
Hilda Hilst – Obscena Senhora D
Inventar um tempo fora da métrica. Sentado na beira da calçada, desmedido de números. Nas mãos, um punhado de vontade guardada. Assovia uma música e se perde nas letras. Três bilhetes de cinema no bolso esquerdo. Chegou atrasado.
Pétalas de rosa murcham no livro de página dobrada. O cheiro engavetado de esquecimento. No compartimento secreto, por isso aqui não revelado, o retrato do amor que teve um fim. Melhor não voltar atrás.
Um homem calvo e de olhos fundos oferece o carnê do Baú. Ainda existe? A mulher de trança e rosa cor de urucum, bem rente a orelha, compra dois. Ah – se eu ainda tivesse essa esperança – devaneia o tempo. Os cabelos nem tão negros da moça tingem lembranças. Desamarela o desejo atingido pela distância. O calendário é testemunha. Essa sangrenta sucessão dos fatos.
Na banca ao lado, uma manchete em caixa alta exibe a lâmina inflexível e crua daquilo que chamam vida – Adeus, Saramago. Luminosa a morte das palavras que não calam. Ninguém repara que o relógio da praça inverte os ponteiros e exalta os segundos. Ninguém.
O tempo, masculinamente, leve as mãos à braguilha e coça, e coça. Gritos, apitos, e batuques se agitam. É gol? Goooooooooooooool. O rebuliço das horas que pulam do relógio. Esquecer é um encantamento raro. Algumas vezes, nem o tempo colabora. Essa iluminura obsessiva cujo nome é saudade.
Um torcedor agitado pisa atordoado por sobre os pés do tempo. De pronto, ele devolve o desaforo – vá de retro satanás. Xingar é bom demais. É tarde, melhor retornar às horas. A lucidez perdeu os olhos vastos de Saramago e o mundo corre atrás da bola. Não há silêncio.
Indiferentes seguem os passantes. O tempo retorna aos ponteiros. Ninguém crê. Cômoda a cegueira dos que metrificam os atos e os dias. Ele cospe no asfalto e ri. Diáfano o feito de ofuscar a vida que escorre.
Perdoa se perdi a conta. Nem eu vi.
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Também fiquei triste com a partida dele. Gostei quando ele quebrou com Cuba, aliás com Fidel. Não se pode dar cabo de vidas que não concordam conosco... Era um machista, aliás era português. Um machista fingido que cria no Ensaio sobre a cegueira um cristo feminino, mas um Cristo.
ResponderExcluirGostei demais dessa sua "A Sombra", muito conteúdo.
Parabéns!
Um belo e fluente texto... Vive-se ao ler e revivem-se as imagens ao reler.
ResponderExcluirAdorei (como sempre)
BJs
Jaz in tem’pus são lembranças
ResponderExcluirTranslúcidas em papelinho
Tipo grafia em preto.
Gosto como escreves,
rodopia as lentes mente.
Bjinhos Gloria e uma boa semana em sol M.
Quando soube da passagem do Saramago, lembrei imediatamente de sua frase: "É preciso recomeçar a viagem. Sempre."
ResponderExcluirÉ bonito sair do casulo... E, todas as vezes que venho aqui, penso em como você, Glória, é abundante, vasta. Sinto que seus olhos buscam coisas além, pq a aparente imagem do real torna-se pequena quando sentimos que há muita outras coisas a serem vistas e sentidas.
Abração em ti!
.aline.
Glória,
ResponderExcluirvou me amalgamando com as palavras da Aline. Teu texto está sempre além e nós vamos seguindo o caminho que tu abres.
Bjs querida.
Será que vamos notar quando tarde demais? Chegar ao luto tardio pela poltona do psicanalista, pelo ouvido do confessionário, umas garrafas no bar ou o colo de uma noite insone? Sim, porque há muito ruído no mundo. A morte de quem se ama, e por certo não é preciso proximidade física para amar, fica mais um ruído dentro da precária construção de barulhos a que chamamos vida, tempo, o que seja. Então sua Sombra vem e reduz o tempo, chacoalha a árvore de barulhos e podemos ouvir um só entre todos - justo o que importa. E, se for o caso, chorar, se for o caso cuspir ao lado e dizer 'ele também não acreditava', se for o caso riscar uma linha ao chão e observar a poeira a preenchendo outra vez.
ResponderExcluirquerida, o que teria eu a dizer? este quase nada de palavras e pensamentos, ante tamanha imensidão?
ResponderExcluirsimplesmente belo. evoé!
beijos,
denison
Belíssimo e delicado texto! Isso aqui é uma lindeza: "Essa iluminura obsessiva cujo nome é saudade".
ResponderExcluir"Esquecer é um encantamento raro."
ResponderExcluirAos que dão a devida importância, aos que sabem o que realmente modifica o mundo - e de certo, não são os gols - essas palavras serão sempre novas em folha. Saramago será sempre estréia!
Lindíssimo, Glória... Feito tu!
"A lucidez perdeu os olhos vastos de Saramago..."
ResponderExcluirQue mais dizer?
O tempo é Rei, mas ninguém repara.
Tristemente encantada, Glória!
Beijos saudosos
Rossana
Que forma mais bela de dizer sobre o passar do tempo! É... a vida escorre, escapa direto das nossas mãos igual à água, mas nem sempre cristalina. E a gente, tal como criança curiosa, segue, em vão, tentando segurá-la entre os dedos. Bjos e saudades enormes
ResponderExcluirSempre com carinho... um bjo meu!
ResponderExcluir:o)
lindo, muito lindo demais
ResponderExcluirLi seu texto num galope!
ResponderExcluirSem vontade de que terminasse...
"Luminosa a morte
das palavras que não calam."
Saramago já faz falta.
Fiz-lhe uma homenagem,
pequena, mas sincera,
em minha confeitaria poética.
Um beijo,
Doce de Lira
Como é bom ter esse espaço tão aconchegante pra fazer a mente voar. Vitarei com mais frequência
ResponderExcluirBeijos
Regina @LivroDPedroII
Glória,
ResponderExcluirUm texto que desperta todas as emoções. Tal como o escritor disse numa das suas obras, a vida das palavras é cheia de vento...
BeijO
AL
Olá, essa frase é sua? "Eu tenho medo de fantasmas vivos, desses que partem e fincam o pé no coração da gente"
ResponderExcluirE por que não esta taça que ergo ao esteta das letras, traslúcido e sem fim?
ResponderExcluirOlá Glória,
ResponderExcluirHoje celebramos data significativa, a semente que nos une aqui neste universo!!
Onde o tempo não envelhece as lembranças de bons momentos...É memória.
Amigo é casa, calor e acolhimentos.
Feliz Dia do Amigo querida amiga,
Beijo pra ti.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir>
ResponderExcluirli sua resposta à 'moça piagetiana' e gostaria de lhe escrever por email
abraços, lindo seu blog!
tekka > relvaw@uol.com.br
A tal "moça piagetiana" a quem você se refere por acaso é aquela que tem 5 livros publicados nacionalmente, alguns já na 19 edição (e na Vozes, não é em editora de tese acadêmica paga pelo próprio autor não)?
ResponderExcluirÉ aquela que trabalha em escolas piagetianas há mais de 30 anos reconhecida internacionalmente, inclusive pelo Instituto Piaget em Genebra?
Será aquela indicada como uma "grande pesquisador" ao CNPQ por Paulo Freire - que aliás, prefaciou seu primeiro livro?
Será aquela cujo pai escreveu mais de 40 livros e criou um método pedagógico revolucionário psicogenético? Aquele que tem o aval ASSINADO pelo próprio Piaget, desde fins da década de 70?
Puxa, fico só imaginando a resposta. Só não deve ser aquela que está no blog dela, pois aquela resposta nem trata do assunto discutido no post - aliás, será mesmo comentário da Glória ou fake? Porque quem comentou no nome dela nem sequer entendeu o tema do assunto!
PS. É, aqui quem escreve é uma pessoa que naõ apenas concorda como admira muito a "moça piagetiana".
Acabei de conhecer teu reino e já me identifiquei muito. :D
ResponderExcluirAdicionei o blog nos meus parceiros do pernoquitas. Parabéns pelo belo olhar.
Luísa