sábado, 5 de junho de 2010
Disfarce
Leonilson
Permanecia calada. Feito porta. Feito pedra. Não que tenha dispensado as palavras. A moça era dona de um repertório cotidiano. Lamentava a pressa dos que carregam seus corpos para o trabalho, o calor que escorre morno por entre as costas, o preço da passagem que sobe e o dinheiro que diminui. Ralhava o governo e o açougueiro com o mesmo grau de indignação e o mesmo tom desaforado de voz. Afinal de contas, dizia ela, eram iguais, sobreviviam à custa de carne e sangue. Para quem cala, a língua torna-se arma e afia os ritos da indignação. No bairro, tinha o codinome “língua solta”. Ana conquistara assim o mais perfeito disfarce. Falava aos borbotões e preservava intacta a palavra que senta e sente. Sem som, sem sentido. Levava os dias nesse vai-e-vem. Reclamar é um ato que apenas ganha propriedade quando o corpo todo se movimenta. Fazia isso como ninguém. Gesticulava para todos os lados, sentava, levantava e cuspia nas palavras. Poucos desconfiavam do motivo de suas ausências. Vez ou outra se vestia como uma dama colocava um caderno na bolsa, uma caneta de escrita fina, seus óculos de grau 2.5 e saía para um destino incerto. Atravessava vias e cruzava esquinas com a curiosidade de um escafandrista. Mergulhava no movimento à cata de perplexidades, rastos de solidão, dores, medos e desafetos invisíveis. Era uma colecionadora de palavras afogadas nas ruas. Após o tempo de passagem, Ana retornava a casa, como quem volta das compras. Antes de entrar, ao avistar a vizinha, amaldiçoa o trânsito e o lixo; depois diz mal do comércio e de seus preços. Entra no quarto só dela, leva as mãos até o rosto cansado e deixa a lágrima adiada descer. Chora por crianças sem rumo e sem mão, por mães sem lugar, por amores sem o outro, por fábricas que já não aceitam gente, por entorpecimentos vãos, por tantos muros e medos. Chora. Toma os óculos nas mãos, a caneta entre os dedos e retoma a escrita. O livro segue o caminho do fim. “Alma vazia. Grita a dor do mundo. Mesmo sabendo que todos os ouvidos serão surdos a ela”. E desenha, finalmente, o nome próprio - Suely. Calada, feito pedra.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Seus textos sempre promovendo muita reflexão...
ResponderExcluirgloria,gloria. quanto amor eu vejo neste texto. vejo dor, também, mas uma dor amorosa de quem nunca esquece de onde veio e o que é. te amo tanto.
ResponderExcluirBela descrição da realidade, nua e crua. Que sensibilidade, querida Gloria.
ResponderExcluirBeijos.
estes olhares sedentos de vida, famintos de mundo. sofreres calados, alada ventura. cantares morenos, a pele escuta. a gente chora e ri. enquanto aqui, neste agora, disfarçado de nunca.
ResponderExcluirquerida, lindo texto.
beijos,
denison
"Entra no quarto só dela, leva as mãos até o rosto cansado e deixa a lágrima adiada descer."
ResponderExcluirMaravilhoso, Glória!
Estou encantada com o seu texto. Com a força, a riqueza, a sensibilidade dele. Com essa habilidade para despertar sentimentos na gente, como esses que falam comigo, agora.
Beijos, querida.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirDa arte de escrever...
ResponderExcluirEla é o próprio livro... Um mudo/tagarela.
Ela és tu?
Bjs
Glória.
ResponderExcluirCada vez que escreve, é um "soco no estômago", no melhor sentido que isso pode ter.
Ai, as camuflagens para disfaçar a dor, conheço algumas, assim como Ana.
bjs
Rossana
querida Glória :-)
ResponderExcluirAmei cada palavra, real, intenso e cheio de alma de realidades cada vez mais existentes e universais :-)!
um beijo grande
Me apaixonei por esta moça! Genial!
ResponderExcluirGlória, teu nome não poderia ter sido outro!
Beijos!
Te adoro!
Que bonita sua escrita! E quanta gente por aí se reconhece em Suely. Por tantas vezes o caminho machuca, a alma pesa... mas a gente cresce. E se fortalece. Tudo, no fim, vale a pena.
ResponderExcluirVoltarei mais vezes!
Beijos!
Não duvido de nada! Quem sabe seja providência divina! rs
ResponderExcluirDescobri seu blog através da Madalena (@ofiodavida). Me procure no Twitter por @La_Maya ou por Lúcia Ramos! Beijos
Glória!
ResponderExcluirQuanto tempo!
Amo os seus textos, sempre poéticos, fortes, intensos e sofisticados, claro!
Beijãoooo.
Pedro Antônio
Muito bom ler textos de quem sabe escrever de verdade. É como se deliciar com a combinação de luz, formas, texturas e cores de um belo quadro, ou ao ouvir um prelúdio de Bach. Ritmo perfeito.
ResponderExcluirEssa é uma outra Ana. Não é a Ana dos diques nem das docas buarqueanas, nem a Ana lispectoriana que vê um cego mascando chiclete e sente a vida pelo avesso. Essa é uma outra Ana.
ResponderExcluirÉ a Ana Diógenes, personagem e criatura, que se faz de palavras para esconder silêncios. Que se faz de revolta e se desfaz em consetimentos.
Essa Ana... tão perdidamente sonhadora e tão misteriosamente prática.
Ela se esconde com as palavras, uma forma de não se deixar penetrar. Não se aproxima que eu reclamo, não me olha fundo que eu te aponto um defeito. E assim ela vai, com tantas arestas e tão côncava...
Essa Ana é real, eu já vi. Ela existe. Seu post é um conto, com todos os ingredientes do bom conto. Síntese e profundidade.
Grato por ler.
bjs
Veleiro
Glória,
ResponderExcluirquantas Suelys existem por aí ?
Alma sensível mas que prefere vestir a máscara no dia a dia. Fica mais fácil. Depois, se afoga na literatura. Assim como me afoguei sempre no seu belo e bom texto.
Limpo. Direto. Objetivo. Suave. Suave como o interior de Suely.
Pena que não possa se dedicar tanto a escrita.
A literatura é o alimento da alma. A arte em geral.
Saudades !
Sempre que puder escreva e apareça.
Grande beijo e boa semana !
Que lindo Disfarce, Gloria. Não é comovente e compassivo apenas pelo olhar que olha a rua em sua paradoxal crueldade e beleza. O é também, e me parece mais ainda, se se deixa os olhos distraídos passear pelo cenário e, então, observar quem observa. Não é que além de compaixão há na mulher de duplo nome curiosidade e, sim, que de certa forma ela se alimenta do que vê? Bela personagem redonda, tridimensional, cheia de poesia e contradições.
ResponderExcluirAdorei!
ResponderExcluirNossa! Que beleza de texto! Quase surreal! De um lirismo cruel! Meus parabéns, Glória!
ResponderExcluirLandNick
Um belo conto.
ResponderExcluirAh o tempo...
na vida de algumas pessoas é um afiador de línguas, nos soltos ponteiros do relógio no vácuo cósmico.
Bem, estou feliz em te rever e ler então tenhas um ótimo final de semana Gloria.
Bjinhos moça.
Glória sempre volto por aqui na expectativa de mais um tesouro.
ResponderExcluirEncontro no disfarce a realidade do teu ser: único, belo, raro.
Beijo cheio de saudades.
PROJETO INVENTALER
ResponderExcluirINVENÇÃO DA LEITURA
LEITURAS QUE INVENTAM A IMAGINAÇÃO
PARTICIPE DESSA ONDA:
Leituras lúdicas incitam o espírito a imaginar e a criar, arrancam de ti o suspiro e te levam ao delírio da razão. Nada é mais prazeroso do que incendiar através da leitura e escrever ferozmente com aquela garra que lhe tiram o fôlego e os sentidos. Essa sensação endiabrada é o que sinto ao ler e mergulhar nas páginas dos livros que libertam a minha imaginação, sinto entorpecida e num ímpeto de escrever a nunca mais parar de escrever e criar outras histórias que nos deixam loucos.
Sente a mesma sensação que a minha? Experimente uma nova experiência: cria, escreva, imagine, invente e mande o seu texto para participar do Projeto INVENTALER.
Mande-me um e-mail de algum texto de sua autoria: conto, crônica, poesia para compor a nova pagina do blog JANAINA RAMOS. Esse é um Projeto de Ação Cultural desenvolvido através desse blog como avaliação da disciplina de Ação Cultural do 7ª semestre noturno de Biblioteconomia e Ciência da Informação da Fundação Escola de Sociologia e Politica de São Paulo, na qual é o curso que estudo.
Para inscrever a sua criação literária narrativa (algum texto literário de sua autoria) basta enviar um e-mail para janainakarina@gmail.com e a partir do dia 14 de junho o seu texto aparecerá na nova pagina do blog como parte integrante desse Projeto INVENTALER.
Conto com a sua participação
Atenciosamente
JANAINA RAMOS
Belo. ;)
ResponderExcluirBeijos!
Gloria, querida. Como gostei desta fantasia dissimulada da escafandrista das palavras. Somos instigados a pensar nos dois elementos essenciais da vida: o corpo e a alma. É a mulher corajosa e cheia de medos, que exterioriza a força ocultando a fraqueza. Grita para que todos ouçam o silêncio, que justifica o renome pelo anonimato. Lindo como tudo o que você escreve.
ResponderExcluirhoje acordei um pouco Suely, e gritei calada as dores do mundo através da história de um cãozinho, talvez perdi a voz que gritava com o tempo, com a pouca maturidade e o bom senso, hoje grito por dentro...
ResponderExcluirque lindo este texto também Glória, vou ler um por dia de frente pra tráz...rs
beijos