quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Camélia, a morte e a andorinha.


Um passarinho manco compõe a cena da despedida. Uma pata sim, outra não e duas asas. Houve quem dissesse, que pena. Doente somos nós que temos duas pernas e não voamos. Impaciência com quem só olha pro’ chão. Eu sei que ela esbravejaria e falaria beleza. Exaltaria o cântico livre da andorinha no jardim de muros. Ela, a alegre senhora do ‘107’. (Nunca gostei de números ímpares). Hospital é um lugar fora do mundo.

Camélia nunca teve papas na língua. Em raras tréguas antes da morte, quando o relógio marcava 17 horas, ela descia e devorava três cigarros até a última ponta. Era quando o pássaro assentava ao lado dela. Ele sem uma perna, ela sem suas usuais asas. Foi diante dessa cena de rara beleza que uma enfermeira asseverou: saiba a senhora que está muito doente e não deveria estar aqui. Ela de pronto respondeu – eu deveria estar onde quero, onde todos deveriam estar. Buft! E a moça de branco recolheu-se. Era sua última vez.

Uma mulher diante da morte, um passarinho e a gaguez de quem não consegue tocar a potência da vida. Quem já morreu sabe que o maior sentimento nunca se conta. Camélia não fala mais. Não mais visita o lá fora. No ‘107’ houve até cânticos de despedida. Januária despontou na janela, e Carolina com seus olhos fundos guardou a dor. Compomos uma intensa sinfonia. Calada a morte permanecia. O olhar cerrado de Camélia cravado em nossas retinas. Imersos na direção do nada. Eu vi. A morte não é verbo. Respira-se vida até que ela se cale. Sem possibilidade de composição de nenhum predicado. Mesmo que em algum momento todos ainda cantem. É muda a partida.

11 comentários:

  1. O tempo, senhor de muitos, mostra que a morte é a ausência da vida, ausência presente, sentida, sem sentido, silenciosa, como o sopro suave do vento nas brumas da alma, pelo sopro de amor recebemos a vida, como um sopro ela se vai, restam lembranças, chegadas, partidas e um coração cheio de amor esperando no cais...
    Bacana o teu conto...
    Abraço baita

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  2. É muda e solitária a partida, querida. E quem poderia nos contar, se é diferente?

    Como sempre arrasando, minha saudosa amiga. Espero que tudo esteja bem com você.

    Um beijo e um abraço bem apertado.
    Rossana

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  3. Olá Glória

    Antes de mais ...parabéns pelo blogue ! :)

    gostei do que li ...

    Gostaríamos muito que desse uma vista de olhos no projecto DVB- Digital Video Book ,de saber a sua opinião e qual o interesse em desenvolver o seu trabalho neste novo formato.

    "Transformamos" os seus trabalhos (já editados em livro, ou não), num DVB- uma ideia original da Pastelaria Studios Productions

    O projecto é recente, é uma inovação, tal como explicamos no nosso blogue:

    http://pastelariaestudios.blogspot.com/


    É exactamente isso! os seus poemas seriam " trabalhados " em DVB . Um livro que se vê como um filme!


    Não se trata do mesmo funcionamento de uma editora "normal", pois não somos uma editora e prestamos essencialmente um serviço criativo.

    A minha sugestão seria, enviar-nos a sua obra, e nós faremos uma análise e um orçamento de custos.

    Posso adiantar que, por ser um projecto novo e, embora o trabalho criativo (audio, voz, imagem, construção do DVB, etc) seja bastante, queremos chegar ao maior número de autores de obras escritas, mesmo que essas estejam ainda na 'gaveta' ...



    Fico a aguardar uma resposta e, qualquer dúvida ...estamos por aqui.

    Um abraço,

    pastelariaestudios@gmail.com

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  4. Camélia, uma mulher que sensibiliza.
    Beijos e saudades.

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  5. partir é calar... mas de alguma forma é também chegar...

    amo suas palavras.

    beijo carinhoso

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  6. Tão infinita e tão breve é a vida do homem! Camélia tinha razão: é preciso viver até ao último minuto, mesmo que seja com um cigarro na mão e se tenha por companhia, uma andorinha sem uma pata...
    A partida é sempre silenciosa...para se conseguir gravar por completo toda a vida que se leva!!
    Adorei o texto e o blog...por isso, fiquei!
    Bjs
    Graça

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  7. Gostei muito, passo a seguir então. Vou ler os anteriores, beijão.

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  8. ...
    -A morte tem significância apenas para os que vivem.

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  9. Glória:
    Parabéns pelo texto.

    Conseguiu desenhar com as palavras sobre um assunto que nem todo mundo gosta de ver, falar.


    Anny

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