quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O vento assanha o desejo (parte um)

A primeira vez em que cruzou com ele era um final de tarde. Um mar de poeira, causado pela demolição da obra sequer a permitia visualizar o semblante dos operários. Um buraco profundo como uma cratera deixava visível o efeito do tempo sob as vigas de ferro da cobertura. Uma ferrugem líquida e pegajosa substituía parte da estrutura de sustentação e havia a eminência de tudo ruir. Falcão sabia disso e leu o temor nos olhos dela mesmo sob a névoa do pó que os encobria. O tempo solta as linhas. Ela pressente. O desejo é a memória corporal de olhares que permanecem na pele. Ele não poderia ter entrado daquele jeito no quarto dela, gritando seu nome, sem que tantos pedaços de seu corpo e de seu cheiro tivessem se fixado na sua paisagem. São partes de uma história fragmentada e submersa, sem nenhum registro. Foi preciso um tempo para que Raquel pudesse trazer à superfície o olhar de F. tangenciando tijolos e cimento, sua mão afixando pregos sob a custódia do desejo, o suspender e o baixar a escada do alçapão e a insistência dela em pular por cima, sob seu olhar cuidadoso. De quantos instantes se tece o desejo? Tem alguém ai que saiba contar esses entrelaçamentos e o ápice, explosão e volúpia em desatino? Ela recorda, vagamente. Houve um momento, logo no início, que o vento levantou-lhe a saia e descortinou a visão. Raquel soltou de imediato a bolsa e segurou a ponta do vento. A saia encobriu o rosto deixando-lhe cega da nudez que se desenhava logo abaixo. A bolsa caiu de suas mãos, suas pernas tremerem e diante dele existia apenas uma mulher de calcinha branca, olhos vermelhos de poeira e de vergonha. Ele recolhe a bolsa do chão, entrega em suas mãos e diz resoluto: precisamos de vinte metros de viga! Vinte metros de viga e ela curvada sobre o vento. Será que eram seus os pés desenhados bem na janela do banheiro, quando a água já descia generosa sobre seu corpo? O momento de F. é feito de tantas argamassas, da quente manta asfáltica, dos revestimentos, das tintas, dos ladrilhos do banheiro em degrade, de suas mãos de operário em construção fundidas à obra que não lhe pertence: o corpo dela, só dela. Nele F. não podia tocar, não havia nenhuma demanda de reparo, de poder assegurar com algum artefato sua solidez, de iluminá-lo, de ladrilhá-lo. Apenas ela, a massagista, podia abrir o quarto de Raquel e percorrer seu corpo, e F, aguardou esse momento. Dele, apenas dele. E entrou.

(conto inconcluso, o próximo tópico: Os olhos de Falcão)

14 comentários:

  1. Glória,
    Quanto delicadez ao escrever um conto.
    "O desejo é a memória corporal de olhares que permanecem na pele."
    Adorei sua definição para desejo.
    Obrigada pelas suas palavras no meu blog.
    Grande beijo

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  2. Gloria, adoro suas visitas. Você tem um jeito sensato de ver as coisas que muito me admira. Você escreve densamente e no paradoxo tudo é muito leve. Esta vida de contornos tortuosos você parece ser a linha tênue da lucidez. Brigado por suas palavras. Espero sempre recebê-las em meu cantinho, viu. Bjos com ternura.

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  3. O vento...a poeira....olhos de falcão...adorei...ansiosa pelo resto do conto.

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  4. Nossa, esse clima é mágico demais! Tem gente que chega derrubando nossas defesas, parece até que já vêm com as chaves e você conduz com domínio nossos passos pelas curvas do vento. Mágico, Glória!

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  5. fico impressionada como vc nos envolve com as palavras e a combinação delas...
    beijos

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  6. Glória já estou curioso a cerca do seguinte: Os olhos do Falcão. Gostei dos traços que compoem essas tuas linhas. Acho que sultimente temos alguns traços semelhantes no trato com as palavras. E para mim seria uma honra ter em meu trato uma pequena semelhança. Você escreve muitissimo bem.

    Abraço,

    R.Vinicius

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  7. São momentos como esse, nesses momentos de troca de desejos que se torna perturbações.


    Quem se arrisca a sistematizar a tenue linha entre epifania e corriqueiro? Eis a perturbação.

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  8. Glória,

    Ah, o desejo...
    Um emaranhado de sentimentos que nos deixa, às vezes, desconcertados.

    Tens jeito com as palavras.

    Beijo, e obrigado pela visita ao meu blog.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Imagino Raquel sendo uma dessas mulheres 'gloriosas' e f. um homem que invade sabendo e sem saber, o contexto é a reforma daquilo que cobre o 2706.
    Uma hora me perco naquele alçapão, mas como o intuito não parece ser o de findar o inicio-de-conto numa explicação unilateral,
    logo compreendo que alçapão poderia ser este,
    logo tudo se in-explica e os dizeres do desejo assumem-se como o triunfo do escrito.

    A ausência de paragrafação prende os olhos.
    Qro ver o resto.

    beijo

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  11. Voce sabia. Olha que você sabia.
    Todo tempo lá, na minha frente, daquele jeito. De quem quer coisa.
    Mulher que provoca recebe. E eu to aqui, esperando pela senhora. É só dizer, que agora eu nao fico só olhando não.

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  12. Sr. anônimo, o Falcão é ficçào. Você é real?

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  13. “O desejo é a memória corporal de olhares que permanecem na pele” – uma síntese para o texto, nas linhas da própria autora. Se está na pele deste homem, ele não pode suprimi-lo. Em quantos momentos esse desejo foi alimentado? Até onde ele foi construído, a dois (mesmo que um estivesse aqui e o outro ali)? A explosão é própria do desejo. Se há algo que ninguém pode tirar de alguém é, justamente, o direito de desejar. E de explodir – desde que se esteja disposto a fazer os reparos, a sofrer a reação (para toda ação existe um) ou, apenas, apreciar, friamente, as conseqüências.

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Ventanias