Palavras descarriladas não movimentam lembranças
Uma estória pode encontrar um fim trágico, ou cair no esquecimento. Melhor que tivesse sido assim. Palavras guardadas são como se não houvessem nascido. Joana fechou portas, janelas e abaixou o volume da música. Fincou cada minuto da atenção no ato de cuidar do lugar. Nas horas vagas, recebia alunos para aulas de reforço. E no final do dia, quando o silêncio trocava de turno com o sol, regava pequenos jarros de alecrim e manjericão. Ela tinha sua própria estória. Era preciso atenção com cada coisa que forma o sucessivo do tempo, tarefas de uma mulher casada. O intemporal é irmão do vento. E o vento embaralha os planos de cada dia. É preciso apenas uma vez. Como na narrativa que se segue. O mais curioso é que é preciso apenas uma brecha, para que o vento assopre. Joana sabia disso mais do que ninguém. E a casa tinha o tom de todos os dias. Cada almoço era acompanhado de um suco com frutas da estação. Um dia, um sopro de extraordinário invadiu o lugar. De uma forma também extraordinária. Joana tomou uma manga entre mãos e viu a intensiva beleza do amarelo escorrendo por entre os dedos. Com a língua, removeu o sumo da fruta que escorria livre. Foi num relance, num minuto de nada que o cheiro da manga trouxe até a casa uma estória que precisava ficar esquecida. Para disfarçar, a mulher se pôs a cantar. Desde pequena tinha esse hábito. Qualquer dor, desavença, medo ela acreditava poder espantar entoando canções em voz alta. E assim fez. Começou em voz baixa, envergonhada pela tom desafinado, pelo desuso da música. A primeira foi um cântico da Igreja. Em seguida, passou para uma marchinha de carnaval, até que cantarolou um pedaço de “Jura Secreta”. E os gestos trouxeram lembranças. As mãos da mulher deslizaram nos cabelos ondulados, abriram passagem no decote e um riso maroto rasgou a ponta dos lábios. “Só uma coisa me entristece, o beijo de amor que não roubei”. Foi esse o trecho que levou Joana para longe dali. Uma breve suspensão do tempo. A hora do almoço se aproximava do relógio! E Joana de imediato pensou – sentimentos sabem como ocupar terras não plantadas. Bonito isso! Podia muito bem tirar o caderno da gaveta e apenas rabiscar o dito. Nem demandava escrever a estória toda. Não. Um cheiro de queimado tomou conta das letras. O fundo da panela revelava a distração: a galinha seca grudada disforme. Ela antevia que bastava uma frase, uma escritura inventada, para a imaginação ultrapassar as paredes da casa. “Só uma palavra me devora, aquela que meu coração não diz”. A música não para e os ouvidos não têm cancelas. Joana olhou pára suas mãos e pediu compreensão. Estórias são memórias de fios infinitos. Escrever poderia fazer retornar a mulher que não cabe em um lugar. A aproximação da hora do almoço emitia um som tonal, como ruído repetitivo – tempotempotempo. Infinitamente. Era preciso fazer algo para não morrer. Joana então abriu a gaveta e encontrou o caderno de tantas estórias desenhadas com palavras e lágrimas. Tomou a caneta entre os dedos, com o coração aos pulos. “Nada do que quero me suprime”. Era seu segredo. Colocou o caderno sobre a mesa. Desenhou algumas palavras com a letra mais legível que pôde traçar em toda a vida. Como uma nota de fim de página rabiscou: a palavra é o bote que me salva. Quando a porta abriu, ela simplesmente disse: o almoço queimou. Você tem fome?
(Jura Secreta - composição de Sueli Costa / Abel Silva)
Joana e a lembrança, a poesia na tua prosa. Tanto tempo sem lê-la é uma perda irrecuperável. Espero que esteja bem.
ResponderExcluirAbraço.
Gloria,
ResponderExcluirImpossível não me lembrar de Francesca, personagem do filme Pontes de Madison, numa saída na sacada, com o vento soprando seus cabelos, tão humana, tão dona de casa, tão mulher... e o vento trazendo a tona sua sensualidade...
ai....
te ler é um prazer inexplicável....
você é divina !!!!
beijo enorme
De volta em grande estilo!!!
ResponderExcluirAs memórias trazidas de volta por odores são incríveis.
Para mim há um cheiro de loção pós barba que me lembra a noite em que perdi a virgindade, há 14 anos atrás.
E olha que nem barba eu tinha. rs.
Mas já usava a loção para dizer que era crescido.
Que você continue a semear, mais amiúde, em nossas terras não plantadas.
Olá Glória, um primor.
ResponderExcluir" Estórias são memórias de fios infinitos. Escrever poderia fazer retornar a mulher que não cabe em um lugar."
Transcende a si e as futuras perspectivas.
Forte abraço,
Hod.
E nos guardados, estórias se escondem. Um texto pleno em sinestesia. É muito bom ler você e perceber 'a escrivinhadora' aqui.
ResponderExcluirAbraços
ler você é um prazer.
adoro teus prosopoemas, glória.
ResponderExcluire, não, não desistirei de te encontrar. aliás, pensava nisso esta semana ainda, olha que coisa. me passa um horário, um tel., sei lá, e nos vemos.
beijo.
ah, sim, escrivinhadora não. tu és ESCRITORA. das grandes, mulher.
ResponderExcluiroutro beijo.
Gloria,o teu blog pra mim foi uma das melhores descobertas da semana!E como tu escreve,noussa! Chega a gente ganha ânimo vindo aqui!^_^ Este teu texto está uma delicadeza: repleto de lirismo e muito bem construído. Já adicionei teu blog aos meus favoritos: sensação de muita leitura boa p/pôr em dia :D
ResponderExcluirTerno e enorme abraço virtual!
Nanda_Lym (via tuitis) ;***
Glória
ResponderExcluirExtraordinário fio de palavras criadas ao sabor do teu tempo interno, ocupando espaço externo tão leve , (embora contundente ) que parece nos embrenhar sutilmente num bosque pela manhã...
Grata pela beleza ofertada!
que bom vir aqui...
ResponderExcluirmuito bom.
Maurizio
Estava num aperreio só aguardando o retorno dos textos!
ResponderExcluirAmei o texto e no nome da personagem!
Bjs querida.
Joana sabe que quem canta seus " males espanta" já diz um ditado antigo.
ResponderExcluirJura Secreta é linda.
Sensível como o seu texto .
"E o vento embaralha os planos de cada dia."
Verdade.
E assim vamos seguindo.
É bom ler você.
Bom carnaval!
tão poético ** adorei e te seguirei! bj
ResponderExcluirPalavras ditas em contextos diferentes.
ResponderExcluirHistórias diferentes.
Lindo.
Bem vinda de volta.
Beijos no coração.
Adorei o post!Todos nós trazemos bocadinhos da Joana dentro de nós. Eu sou como ela, quando estou magoada com alguém ou algum acontecimento, ponho-me a cantar. Não sei se cantar espanta os males, mas acalma a alma por alguns instantes.
ResponderExcluirUm beijo
lindo! Tantas Joanas por aí, tantas rotinas e ventos surpreendentes que nos trazem boas lembranças e inspirações.
ResponderExcluirNossa que saudade que tava de vir aqi nesse blog vivo e pulsante pra ler as palavras de Glória.
ResponderExcluirEsta é a minha primeira visita ao teu blog e logo de cara já gostei. Boas estórias e muito bem escritas. Minha chará tem muito a ver comigo, exceto pelo gosto pela natureza, da qual eu não sou muito fã, infelizmente. Mas você tem o dom de fazer estórias, e isso para nós, seus leitores, é uma alegria.
ResponderExcluirContinue escrevendo...
Bjos!
Tempos que não te visito e encontro mais um belo texto, cheio de vida, ardente.
ResponderExcluirBeijo e carinho
Carpe Diem!!
Segredos do tempo, lembranças...
ResponderExcluirJoana é como nós."O que me faz infeliz, é o brilho do olhar que não sofri..."
Continuo adorando seu estilo gostoso de contar, como quem canta.
Gloriosa.
bjs
Rossana
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir"A palavra é o bote que me salva."
ResponderExcluirLi esse teu texto na tela do computador. Ontem mesmo antes de ir ao teatro. Depois do teatro numa roda entre amigos conversei um pouco sobre a alquimia e a dialética da poesia, como bem disse Bachelard, mas um verso me escapava na hora da exemplificação.
Citei outros poetas que em mim alquimizam e quem comigo conversam, mas um verso me escapava. E eu sabia/sentia isso.
Tarde da noite, já de volta pra casa, percorrendo nossa Fortaleza noturna em suas ruas mais noturnas ainda, o verso veio ao meu encontro: "A palavra é o bote que me salva".
Voltei ao teu blog. Imprimi esse texto e grifei com caneta marca-texto: "A palavra é o bote que me salva."
Escrevo pra dizer que teu texto tem alquimia e dialética, como bem definiu Bachelard a poesia. Tua prosa é poética, e por isso, como tinta de nanquim, não se apaga com o tempo. Grato por isso, viu?
Grande abraço,
Veleiro
E então fico com uma vontade ingente de chupar manga. Carnuda e suculenta. Abre-me o apetite para saborear aquela galinha que pode ser de cabidela. Mas logo então sinto o vento soprando o aroma forte do alecrim confundido com manjericão. Não, não é nada disso que pretendia falar, mas do sentimento tão pessoal, poético e feminino que, de tão longe, me fez aproximar da escrivinhadora.
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