A imaginação é a memória que enlouqueceu.
Mário Quintana
Ela deitou-se cedo. Na dita hora em que o buraco se abria diante dela. Deviam ter avisado, desde as primeiras estórias, que gente grande se perde nos vazios. A escuta de vozes e o barulho dos gestos acordados preenchiam o escuro. Nem chá de cidreira, nem a bendição da reza, muito menos ameaça de castigo faziam a menina adormecer. A mãe trouxe até uma moça do sertão para acompanhar as noites insones de Carolina. E quase rogou à criatura que desse um jeito da filha deixar a casa dormir. Maria maluca, como era chamada por todos, foi a responsável por parte da estranheza que a não mais menina experimenta ao cair de cada dia. Imagina ter que esperar todas as noites por um homem montado à cavalo, trazendo o número do jogo do bicho escrito na testa. Maria dizia que gente inocente é que servia para receber recados de Deus ou do Diabo. Por anos seguidos, Carolina aguardou recolhida a visita do desconhecido. Nessa noite, vestiu a camisola de seda que ganhou da madrinha, tomou entre as mãos o livro de Mia Couto e embromou a hora do medo. Afinal de contas já fazia mais de vinte anos que o cavaleiro da noite ameaçava aparição. Uma mulher que acorda quase nunca se esquiva do mistério. O sinal das linhas era traçado “Na berma de nenhuma estrada” – quem amamos nasce antes de haver o tempo. Soltou de súbito o livro e sentiu os olhos marejar. Trouxe à tona a interminável espera do homem que nunca viera. E foi recordando cada traço do visitante distante: a camisa aberta até a cintura, a mão firme no cabresto, a ligeireza no trote do cavalo e o olhar de bicho fosforecendo o escuro. Ao alcançar as mãos do vaqueiro, parou de súbito e percebeu que ele carregava no dedo médio um anel de madrepérola. Entre pequenos fios de lágrimas Carolina desenhou um riso de formosura. E se o anel fosse a prenda que o cavaleiro guardara por todo o tempo da interminável viagem. O medo fecha cancelas. Deitada é que não ficaria mais. Foi até o espelho e viu que sequer penteara os cabelos, havia também a palidez das virgens e as luzes apagadas em todos os vãos do corpo. Carolina atirou as vestes e abriu as janelas. Os códigos alteraram a senha. O homem podia vir com o bicho escrito na testa, podia vir. Ela aceitaria os desígnios de Maria. Nua como convém a uma mulher que visita aquele que espera. E finalmente pode fechar os olhos. Sentiu os galopes do cavaleiro rasgando o caminho nas veredas . E se deixou percorrer. Maria Maluca havia deixado plantada a chave do enigma – para dormir é preciso estar acordada. Quando o dia amanheceu, fez sua fé no jogo do bicho. Viu dois “um” estampado na testa do cavaleiro e indagou – que bicho é esse – o homem respondeu – é cavalo.
já estava com saudades de tu por aqui.
ResponderExcluirglória, que coisa linda!!
ResponderExcluirlembrei-me de clarice, sim, e de sua paixão por cavalos e pessoas.
a poesia de tuas palavras me levaram à isso ó:
http://mariolas.wordpress.com/category/aristides-ribeiro-fortalezace
beijo grande
Querida Glória, você precisa ler o meu livro! Tivemos uma transmissão de pensamentos ou este seu texto é uma intuição que as mulheres carregam em si! É tão bom ler estas palavras que você transforma facilmente em prosa poética. E que conteúdo mais verdadeiro, que traço do destino para cada mulher!Tão lúcido seu texto, tão claro, tão fonte de água cristalina! Gostei muito! Abraços!
ResponderExcluirMe calo, me rendo, me redimo diante das tuas letras, do mistério que no susto me fez acordar...
ResponderExcluirFantástico.
Impressionantemente bem escrito, bem vivido...
Vou "sequestrar" para o Seres Coletivos. Rá!
Beijos, Glória.
Giselle Zamboni
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluiruma glória de texto! delicioso.
ResponderExcluiraventou o vento nas linhas das mãos...
beijos, denison
"Uma mulher que acorda quase nunca se esquiva do mistério. O sinal das linhas era traçado “Na berma de nenhuma estrada” – quem amamos nasce antes de haver o tempo".
ResponderExcluirUma mulher que acorda não mais dorme com o medo, é dona das chaves dos enigmas, conhece-lhes os segredos, abre-lhes as janelas.
Pode então dormir por estar acordada.
Transpiras vida, sonho e poesia em todos os poros do texto, Glória. O bicho é cavalo... alado.
Feliz Páscoa,
ResponderExcluirHod.
Penso Glória que voce quando escreve tem o dom de deixar um vazio de palavras como quem pressente que tendo que escrever não deve esmagar as entrelinhas - aquelas que se dão a ver pelo encantamento do dito e o suspiro daquilo que não anunciado se insinua pelo olhar do leitor.
ResponderExcluirBeijo, Shara.
O vazio é inexorável, é inclemente.
ResponderExcluirE o teu texto é prenhe de possibilidades. nos vãos das linhas há mais que as palavras escritas...Deixar margem à intertextualidade, escrevendo com tamanha perfeição é para quem DOMinA a palavra, a escrita e todos os bichos.
Muito bom, Glória.
Ler-te é um prazer.
Boa Páscoa!
Gloria: tinha de ser você a melhorar meu dia,sabia? Tinha de ser você. <=)
ResponderExcluirEsperar....
ResponderExcluirEspera...
Esperar...
Espera.
Melhor esquecer, não?
Bom você de volta.
Beijosssssssssssss.
"Deviam ter avisado, desde as primeiras estórias, que gente grande se perde nos vazios."
ResponderExcluirE Carolina parece ter preenchido a vida com a espera, até sentir completar no corpo o que lhe faltava.
Independente do número, de sorte ou de azar, o grande prêmio já lhe compunha...
Adoro teus textos cheios de imagens, Glória... Histórias em cor, feito filme, feito livro infantil sem pudor... Nem sempre - confesso - encontro palavras pra comentar...rs
Beijos, querida!
Gloria, a energia de tu ser quem és, me impulsiona a ousar, pode acreditar.Eu quero um bem danado a ti. É coisa de felling, não sei explicar direito, mas é a mais pura verdade.
ResponderExcluirQuerida, vi a cena não só na minha cabeça, mas diante dos meus olhos, como se fosse real.
ResponderExcluirAdorei o seu do blog :)
e sempre que poder vou passar aqui.
Beijinhos
Depois passeia pelo meu...
ResponderExcluirhttp://martonolympio.blogspot.com/
Se gosta de ler, bom dia :)
A beleza das palavras em movimento.
ResponderExcluirLindo Glória, como todas as suas palavras.
ResponderExcluirMeu blog tá com uns probleminhas e atualmente aparecendo como aberto apenas pra leitores convidados, rsrs. Não é verdade, é pura loucura do blogger! Tá parado mesmo, sem postagens, sem visitas. Estou aproveitando pra fazer umas reformas nele. Espero voltar logo.
Bjos!
Berenice
Passei para deixar um beijo e me esparramei nesse vendaval.
ResponderExcluirVocê escreve como se cantasse.
Beijo
Rossana
Olá...
ResponderExcluirNão conhecia aqui mas já me apaixonei.
Se me permitir gostaria de linkar seu blog lá no "Reflexões".
Grande Abraço.
Glorinha,
ResponderExcluirEstive pensando, que ventania ou furação nos levou para longe de nossas conversas de mulher. Que rumos terá tomado as palavras que sempre nos uniu feito irmãs? É preciso compreender os sinais e as chaves para compreender a solidez e afluidez do amor, da amizade e de tantos outros sentimentos. Espero que um bom vento nos envolva para um encontro de (novo).
beijo no coração,
Lidia Valesca
deviam te-la avisado
ResponderExcluirah,deviam
lindo demais tudo aqui
Volto!
Olá Glória,
ResponderExcluirO Blog da Berenice está desativado por tempo indeterminado. Agradeço muito suas visitas e todo seu carinho. Meu email continuará disponível para qualquer contato, fique à vontade. Sempre voltarei aqui pra ler suas lindas palavras!
Um beijo,
Berenice
"Tudo isso, que é nada, subitamente parece tão absurdo e patético e insano e monótono e falso e sobretudo tristíssimo” .
ResponderExcluirCaio Fernando Abreu
Vontade de te ler em novos textos, Glória.
ResponderExcluirbeijo
"Uma mulher que acorda quase nunca se esquiva do mistério."
ResponderExcluirTudo lindo e maravvilhoso.
Voltarei sempre
Muito lindo! Adorei pela evocação da candura imaginativa que nos leva a sonhar acardados como a Carolina. Quem sabe um alazão não venha nos buscar para percorrer novos mundos?
ResponderExcluir