terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A escrivinhadora


Palavras descarriladas não movimentam lembranças



Uma estória pode encontrar um fim trágico, ou cair no esquecimento. Melhor que tivesse sido assim. Palavras guardadas são como se não houvessem nascido. Joana fechou portas, janelas e abaixou o volume da música. Fincou cada minuto da atenção no ato de cuidar do lugar. Nas horas vagas, recebia alunos para aulas de reforço. E no final do dia, quando o silêncio trocava de turno com o sol, regava pequenos jarros de alecrim e manjericão. Ela tinha sua própria estória. Era preciso atenção com cada coisa que forma o sucessivo do tempo, tarefas de uma mulher casada. O intemporal é irmão do vento. E o vento embaralha os planos de cada dia. É preciso apenas uma vez. Como na narrativa que se segue. O mais curioso é que é preciso apenas uma brecha, para que o vento assopre. Joana sabia disso mais do que ninguém. E a casa tinha o tom de todos os dias. Cada almoço era acompanhado de um suco com frutas da estação. Um dia, um sopro de extraordinário invadiu o lugar. De uma forma também extraordinária. Joana tomou uma manga entre mãos e viu a intensiva beleza do amarelo escorrendo por entre os dedos. Com a língua, removeu o sumo da fruta que escorria livre. Foi num relance, num minuto de nada que o cheiro da manga trouxe até a casa uma estória que precisava ficar esquecida. Para disfarçar, a mulher se pôs a cantar. Desde pequena tinha esse hábito. Qualquer dor, desavença, medo ela acreditava poder espantar entoando canções em voz alta. E assim fez. Começou em voz baixa, envergonhada pela tom desafinado, pelo desuso da música. A primeira foi um cântico da Igreja. Em seguida, passou para uma marchinha de carnaval, até que cantarolou um pedaço de “Jura Secreta”. E os gestos trouxeram lembranças. As mãos da mulher deslizaram nos cabelos ondulados, abriram passagem no decote e um riso maroto rasgou a ponta dos lábios. “Só uma coisa me entristece, o beijo de amor que não roubei”. Foi esse o trecho que levou Joana para longe dali. Uma breve suspensão do tempo. A hora do almoço se aproximava do relógio! E Joana de imediato pensou – sentimentos sabem como ocupar terras não plantadas. Bonito isso! Podia muito bem tirar o caderno da gaveta e apenas rabiscar o dito. Nem demandava escrever a estória toda. Não. Um cheiro de queimado tomou conta das letras. O fundo da panela revelava a distração: a galinha seca grudada disforme. Ela antevia que bastava uma frase, uma escritura inventada, para a imaginação ultrapassar as paredes da casa. “Só uma palavra me devora, aquela que meu coração não diz”. A música não para e os ouvidos não têm cancelas. Joana olhou pára suas mãos e pediu compreensão. Estórias são memórias de fios infinitos. Escrever poderia fazer retornar a mulher que não cabe em um lugar. A aproximação da hora do almoço emitia um som tonal, como ruído repetitivo – tempotempotempo. Infinitamente. Era preciso fazer algo para não morrer. Joana então abriu a gaveta e encontrou o caderno de tantas estórias desenhadas com palavras e lágrimas. Tomou a caneta entre os dedos, com o coração aos pulos. “Nada do que quero me suprime”. Era seu segredo. Colocou o caderno sobre a mesa. Desenhou algumas palavras com a letra mais legível que pôde traçar em toda a vida. Como uma nota de fim de página rabiscou: a palavra é o bote que me salva. Quando a porta abriu, ela simplesmente disse: o almoço queimou. Você tem fome?
(Jura Secreta - composição de Sueli Costa / Abel Silva)