sábado, 19 de dezembro de 2009
Marluce, o delta e o arco-íris
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Dirceu de Marília
Para Marília de Tomás Antônio Gonzaga e para todas as mulheres que tiveram seus versos partidos
domingo, 11 de outubro de 2009
A ficção que me confessa
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
Vias da Intimidade
domingo, 20 de setembro de 2009
Amor é imaginação
Cecília Meireles
Era bem cedo, quando ele cruzou a porta. Não anunciou o nome e muito menos o motivo da repentina visita. Já foi entrando e recorrendo a quem lá estivesse: é aqui que vive a poeta? Ozanira, Joana de nascimento, tinha o dever sacramentado de interceptar a entrada de estranhos. Dona Cecília não podia escrever nenhuma linha, dizia a moça – com aquele fervilhão de gente atrás de falar com ela. Para chegar à escritora, primeiro tinha que tirar prosa com Ozanira. Ela era a dona do tempo. Escrever é um modo de se abster das horas. Naquele dia, Cecília despertou com uma réstia de sol perfurando a brecha da cortina e fazendo luz nos olhos dela. Imaginou atraso e se lançou fora da cama, em sobressalto. Essa mania eterna de correr atrás de "nãoseiquê" mesmo que o dia escorra em abundância. Imediatamente, o relógio ostenta a hora certa: sete da manhã. Quase brincadeira de mau gosto. Esperou por toda a semana esse instante de não ter obrigação. E acorda, exatamente pontual. Imaginou de pronto que sol é do gênero masculino, diferente da lua. Que ele rasga o dia alumiando tudo, furando a noite, não deixando um recanto permanecer apagado. E sem que qualquer coisa a demovesse da idéia, se pôs e esbravejar o astro e seus inconvenientes raios. Arrogante! Essa foi a sua mais leve palavra. Esse cerzir da vida leva um pedaço para, logo em seguida, estampar compensações. O aroma do café trouxe lembranças de menina. A fazenda Cachoeirinha, o mugido das vacas no curral e o chocalho das cabras no terreiro. Toalha de linho e bem ao lado da xícara de Cecília, a tapioca branquinha recheada com queijo coalho. Um estômago tem fome de generosidades postas à mesa. Ela toma o primeiro gole de café e sorri. Havia sido severa com o sol. Afinal de contas, fazer despertar pode ser uma forma de amar. Esparramou-se no sofá e deixou o tempo passar, descansado. Quando ele chega, o desconhecido, a mulher já ganhou ternuras. Aqui mora a poeta? Cecília se agita e, curiosa, responde: aqui mora poesia. E você, quem é? Ele murmura, por saber que cruzou a casa como um raio, e a faz recordar - meu nome é Mário. E evoca o motivo de um amor nunca dito. Eu sei da tua timidez. Não temas: “o luar é a luz do sol que está dormindo”.[i] Cecília se remexe no sofá, balbucia o nome do poeta e concede a esse amor o sono infinito. Ozinira, do lugar dela pensa alto – essa Dona Cecília escreve coisas no pensamento.
[i] “Verso avulso” de Mário Quintana
sábado, 12 de setembro de 2009
Rita e Sofia - metamorfoses de setembro
domingo, 30 de agosto de 2009
Dormindo com o desconhecido
sábado, 22 de agosto de 2009
Eu abro a porta: um pedido mútuo de perdão
“por que cresceste curuminha, assim depressa, estabanada, saíste maquiada dentro do meu vestido”
Chico Buarque
Ela soltou a mão. O vidro do carro subiu diante da cara espantada da menina. Fechada na solidão. O castigo por falar muito, por esconder-se para brincar, por deixar comida no prato. Ficar trancada no carro. Interromper o lugar de passar pode ser a forma mais rápida de se matar a coragem. Uma criança desconhece cancelas. Leva um tempo para que o abandono se torne nítido e mudo. Ela, de início, ficou aquietada. Na sua imaginação dos jogos de esconde-esconde, Maria acreditou que a mãe logo, logo voltaria. A feira engoliu a imagem da mãe em meio às barracas e ao vai-e-vem dos passantes. Lá fora, gente, muita gente. Os vidros fechados produziam a imagem de um filme mudo. Invertido. Dentro do carro havia apenas calor, o medo e um vácuo de palavras. A ausência faz barulho. Um nada se instaurou como fogo na alta temperatura do lugar fechado. Repentinamente, uma explosão devastadora de terror, sem lugar, sem nome tomou conta do corpo inteiro da menina. Não havia em volta dela qualquer coisa familiar, nem um movimento possível capaz de reter o desespero. Havia a possibilidade de um choro alardeado chegar aos olhos e ouvidos da mãe? Havia? Não. Esmurrar os vidros. Muito. Olhos de todas as espécies acercaram-se do carro. Uma multidão de desconhecidos fez ressoar para fora o choro mudo de Maria. Faltava ar, faltava fôlego. Uma mulher de cabelos longos e mãos de bondade, que nem as santas do colégio de freiras, roga calma. De fora do vidro, através de gestos, diz que um corpo pode sobreviver, mesmo que morra sozinho. Mesmo que uma criança tenha que entender, antecipadamente, a dor dos fios rompidos. Diante da incrédula multidão, surge a mãe de Maria. Tão cerceada e muda quanto a menina. Com uma diferença, parecia que ninguém se dava conta de seu fechamento, de ter sido castigada em silêncio. Todos os dias. Em volta do corpo da mãe, vidros suspensos parecem ter vedado seus transbordamentos, seu viço. É preciso um gesto que faça abrir as portas. Ela adentra o carro, senta e permanece muda. Até que a menina deite a cabeça em seu colo, banhada de suor e lágrimas. Até que a dor das duas seja uma. Até que a vida de cada uma siga outras rotas. "Se fosse permitido, eu reverteria o tempo". Abriria todas as janelas, que dão para dentro e para fora. E me permito, e te permito abrir entre nós essa porta de perdão. Amém.
domingo, 2 de agosto de 2009
A imensidão na torre
A paisagem desafia os limites da visão. Uma luz intensa, quase invasiva, derrama-se sob o traçado xadrez de uma fortaleza dos ventos. A mulher se encontra elevada, podendo ver mar e dunas, mangues banhados pelo fluxo e refluxo das marés, verdes confinados entre paredes e vias. O reinado da visibilidade. Sua torre ocupa o topo mais alto do planalto e alcança os quatro pontos cardiais da cidade que vagueia cega. Cada final de tarde, um sabiá, de canto melódico, pousa na torre e enuncia o tempo das asas e do vôo. Ela repete impulsivamente o mesmo movimento – toca o pescoço e tenta afrouxar o que restou das correntes. O lugar, por vezes, ainda é escuro e pesa. Lá fora, a claridade rasga o céu das manhãs. Uma existência trafega sob superfícies, entre abismos e pontes. Ao traspassar túneis, cavernas e lugares confinados Raquel vislumbra o que permanece. O tilintar do aço sendo afiado, o zumbido do frio e da fome e a chave do carcereiro entreabrindo passagens. Poderia ser de outra forma? O corpo guarda e preserva o raro, o sagrado. Mesmo perfurado, amarrado, forçado, amordaçado existe dentro dele um cômodo secreto que abriga o perdão, doses de ungüento e porções de encantamento. O deslizar da língua de Raul, o percorrer suave das gotas de água por entre os seios, sua desmedida ternura provocam na mulher um lastro de dor e paixão. A memória dá vida. O prazer guardado, retido abre passagem e afrouxa as correntes. Ela desperta. Abre a porta. É ele, o mouro temido, o guerreiro incansável e rude, de lábios grossos, mãos ásperas e certeiras que a conduz para além da escuridão. Uma mulher pode temer e esconder por toda uma vida suas agitações, estremecimentos e precipícios. Uma mulher pode se esconder. Daqui de cima Raúl aponta a direção dos ventos. Pequenos vestígios de asas crescem em meio a cicatrizes e marcas de correntes e cordas. Ela enxerga e move-se sob o lastro de luz. É dia. A moira entoa o canto livre do sabiá.
segunda-feira, 27 de julho de 2009
A nascente do encantamento: o mouro e a moira (parte três)
Silêncio. Daqui ouço os gemidos de Raquel e o arrastar das correntes. Um prazer em tom de lamento que alteia o som quando se instala o vácuo. Alguns fios podem compor uma forma de narrar história. Raul, mouro da dinastia Almorávida, chega a Península Ibérica trazido pelos ventos da ameaça de reconquista de Al-Andalus. Durante as cruzadas, protegido por seu elmo e armadura, Raul incorpora a alcunha de homem de ferro, o gigante. Não tinha cara, nem sabia do corpo. Restava uma dormência. O guerreiro havia tomado o lugar do homem. Suas mãos reconheciam apenas a superfície fria e sólida do escudo e o fino desenho da lança. Os braços eram talhados para movimentos de força, de gestos largos e firmes. Todos os sentidos do guerreiro se voltavam para uma única direção: o inimigo. Curiosamente, uma vida se conta mais pelos desvios de rota do que pelos itinerários traçados nos mapas. Na batalha de Zalaca, um confronto decisivo, Raul e seus guerreiros derrotam o Rei. Os mouros ocupam o palácio, assassinam seus guardiões e, inusitadamente, encontram no calabouço a princesa Raquel, filha primogênita do Rei. Assim como Raul, ela também vivia uma batalha entre mundos de limites tênues. Raquel havia sido acusada de feitiçaria e de uso de poderes obscuros. Ela detinha o poder de misturar os códigos entre mundos forçosamente cindidos.
Não havia armadura nem elmo capazes de inibir a correnteza que tinha sua nascente no corpo da feiticeira. Ela via para além dos escudos, das paredes grossas do castelo, dos limites do reino, das linhas que pareciam separar céu e terra. Carregava um desassossego povoado por seres de terras diversas e proferia um dialeto intraduzível no léxico local. A presença e o domínio dos mouros tornam-se ameaçadora não apenas devido a extorsão de riquezas e terras, mas pelo temor das crenças inspiradas na magia e em tudo aquilo que não se vê. A princesa vivia no limbo, presa entre dois mundos. Já pelos denominados bárbaros é tida como moira encantada. As lendas dizem que as moiras, donzelas de irresistível beleza e poder de sedução, podem ser confundidas com montes, florestas e rochedos.
É desprovido da proteção de ferro sobre o corpo, de anteparo por sobre os olhos que Raul fita Raquel. Um guerreiro sabe quando é atingido frontalmente. Logo, é tomado por um fogo devastador, que só acende, só ascende. Ele sabe que não mais alcança sua armadura. Rende-se ao corpo. Toma entre as mãos a pele branca da princesa e avança, até alcançar um ponto com desenho de infinito. Penetra a escura caverna. Raquel, a moira, guardiã dos locais de passagem, fonte selvagem da manifestação do sobrenatural ela, fêmea encantada, toma a mão do homem e o conduz ao interior da terra. Entorpecidos, para que nunca se quebre o encanto. Com seu pente de ouro, tocado aos fios longos dos cabelos negros da mulher, Raul quebra a corrente que separa os mundos e permanece.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
A armadura do guerreiro e as asas da feticeira (parte dois)
Raquel cerra os olhos, aperta as pálpebras até que o medo seja revertido em escuridão. A cancela do olhar é sua única via de fuga. Ela se encolhe e esconde a cabeça entre braços e pernas. Um rasgo de choro invade o silêncio dos gestos. O homem permanece ao seu lado. Em seu rosto delineia-se uma grave expressão de incredulidade. Uma mulher condenada por todo tipo de sortilégios não tremeria tanto diante do inusitado. Por outro lado, um homem que apenas conhece o poderio da força física não tem como esboçar temor diante da magia de uma mulher seguramente acorrentada. Ele havia escutado por todo o reino estórias prodigiosas acerca da feiticeira. Era alardeado aos quatro cantos seu poder de curar, predizer o futuro e o de provocar paixões passionais e traiçoeiras. Raul, o carcereiro, fora advertido para que em nenhum momento mirasse os olhos da presa. Seus movimentos no calabouço eram tão limitados quanto os de Raquel. O corpo de um homem e de uma mulher sabe das ondulações do desejo, mesmo que falte a vibração das palavras. Raul era um mouro destemido e, por isso mesmo, se julgava inabalável. Já fizera parte das linhas de frente das cruzadas e considerava o calabouço o lugar para um breve descanso. Costumava dizer que seu corpo era armadura e por isso dispensava escudos. Havia ganho a alcunha de gigante e essa batalha era considerada a mais branda de sua vida. Uma mulher com correntes envolvendo cada braço, pernas e por volta do pescoço parecia não oferecer ao lutador nenhuma espécie de risco. Ele estava à salvo, afora algumas zonas de percepção consideradas as mais valiosas armas do carcereiro. Seu faro de caçador, seu ouvido de predador, seu olhar de tiro certeiro. Todos os sentidos estavam ativados para o bem e para o mal. Os ouvidos não têm pálpebras e os olhos não sustentam invólucros de ferro. Ele não contava com a imagem de pingos de água deslizando por sobre os seios brancos de Raquel. Ele não imaginava que seus cabelos pretos volumosos tangenciassem a cintura e emoldurassem uma beleza de fêmea selvagem. Ele muito menos antevia a delicadeza e o silêncio aquietado na superfície da pele e dos gestos de uma mulher entre correntes. Ao deixar-se embeber por cada gota, ao burlar nós, cadeados e cancelas Raul foi sacudido pelo pranto ruidoso de Raquel. Ele não apreendeu esses golpes. O que fazer? Repentinamente, o carcereiro toma as chaves e afrouxa o metal que envolve o pescoço da mulher. As mãos ásperas do homem percorrem o caminho de lágrimas. Em seguida, seus dedos entrelaçam os fios do cabelo de Raquel em movimentos contínuos de cima até alcançar às pontas. Uma a uma. Havia um tempo sem que nada fosse dito. Apenas ruídos. O corpo é que fala as palavras. Cada fio desalinhado de cabelo, cada ternura deslizada parecia romper um quantum de sons abafados. Como rito primeiro de criação do mundo, Raquel fixa a visão em direção aos olhos do carcereiro e entoa uma canção. Um som modal, como um tufão de intensidade liberta o gemido acorrentado da feiticeira. O encantamento se sobrepôs à paisagem. Um corpo de mulher avoa livre em meio a escuridão. Não havia mais correntes nem armaduras. Apenas o coração de um homem abrigado nas asas de uma mulher.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
As correntes do desejo - parte um
As correntes contornavam pernas e braços. Uma réstia de luz perfurava o topo da parede e incidia no dorso da mão esquerda. Ali, não havia tempo. Era lua cheia ou apenas um raio de sol cruzava o escuro de uma noite que parecia eterna? Raquel sentou cambaleante e deslizou o olhar sobre o corpo até alcançar os pés. Não fazia calor nem frio. O vestido azul-turquesa aveludado compunha com os olhos um infinito céu de tristeza e ausência. Seus seios pareciam ter escapado do vestido. Sede, muita sede. A vista turva fez girar o lugar. Ela tenta levantar-se e é imediatamente impedida devido ao peso das correntes e a um outro, invisível, que se instala no vácuo das lembranças. Os músculos do corpo de um homem e de uma mulher têm o tônus fortalecido por cada fragmento da memória que permanece. Raquel perdeu os fios narrativos de uma história que precisou ser apagada. Ela se curva e aguarda a entrada do carcereiro. O rangido da porta de madeira sendo arrastada no chão de pedra confunde-se com a voz daquele que a mantém sob vigília. Ela nunca ouvira um som desde o momento em que fora recolhida ao calabouço. Raquel recosta-se na parede esburacada, coberta de limo e recebe comida e água. Em seguida, suspende os olhos com a bacia nas mãos e entorna o líquido. A sede faz escorrer, já a fome não deixa escapar nenhuma migalha. Os olhos do carcereiro seguiram o destino da água e devoraram cada parte descoberta do corpo de Raquel. Ele tinha cílios fartos, caindo por sobre olhos cansados de atravessar abismos de mãos vazias. Uma mulher sabe quando um homem permanece deserto. Ela arrastou-se, segurou cada uma das pernas do carcereiro e se recostou. Os cabelos longos de Raquel vestiram seu rosto e penderam aos pés do homem. Ele se acocorou, tomou-a entre as mãos, afastou os cabelos da mulher e passou a língua em cada gota de água que permanecia em seu queixo, por sobre o pescoço e por entre os seios. Raquel deitou seus olhos de cor amarela, imprecisos como fachos de luz em flecha veloz. O homem sentiu correntes de calor enredar braços e pernas, enlaçar pontos de cruzamento entre vigília e vontade. A chave perdeu-se do lugar-passagem. Não havia saída. Estavam presos.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
As veredas do olhar
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Maria Bonita e o galope do pistoleiro
tamanho sem beira
silêncio na ponta da língua
olho certeiro de cangaceiro
compondo a retina
o alvo se esgueira
mãos ao alto
corpo sem fronteira
sussurro sobre ombros
desejo armado da presa
furando vereda
estampido grito do vaqueiro
pernas livres de esporas
cavalo sem cela
galope de dois em desatino
dedos molhados da pequena morte
invadindo a fera
cheiro de fêmea não tem cancela
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Ave rara
Adiantaria dizer, me faltam frases? O bosque fica silenciado ao final de tarde. Logo, logo seremos tomados pelo frenesi do trem da alegria. Da última vez, vi uma criança aos prantos diante do Cascão. Minhas mãos não têm lugar. Eu poderia me tornar catadora de ditos capazes de fazer você se retirar sem sequer olhar para trás. Uma palavra solavanco que acabasse lançando para fora esse sentimento incômodo, esse passageiro sem bilhete. Eu disse adeus em uma sílaba. Você me pediu para soletrar uma sensação sem vestes. Que belo o cenário da despedida! O playground é um convite a olhar para trás. Brincar de gangorra exige pesos em proporção. Fiquei elevada e vi teu corpo assentado rente ao chão. Esvaziado da vontade de partir. Vi também a fita azul dos três pedidos, ainda presa ao pulso. Lembro. Fechei os olhos e firmei cada desejo enquanto você entrelaçava os nós. Não há sinestesia entre nossos signos. Teu ascendente terra fixa a reserva demarcada. Todos os pássaros apreendidos em cativeiro são libertados nessa ampliada área de preservação. De cima da gangorra sigo o bater das asas de uma ave rara. O Urutau se camufla diante dos galhos do frondoso Carvalho. Você sabe que sou capaz de seguir movimentos de vôo e esquecer o risco de te lançar fora dali. A minha fita da sorte há muito se partiu. Eu acho que confundi os pedidos. O primeiro era de viajar de carro por tempo indefinido. Talvez, não fosse. Acabou de passar entre nós o Cebolinha seguido de crianças de todas as cores. O trem parou na estação. A nossa diferença se alinhava desde os primeiros laços. Nenhuma promessa tua fica esquecida. Você é capaz dizer os pedidos na ponta da língua. Bom ver tudo daqui de cima. Deve custar esse ato de sustentar com os pés no chão o peso da partida. O Urutau me fixa o olhar. Ele pode ficar estático por um dia inteiro e não se assustar com qualquer ruído. Somos aves de espécies diversa. Pedir para descer vai agravar a gana de me reter. Minhas pernas doem. Preciso confirmar o rompimento em movimento duplo dos lábios. A-Deus. Houve silêncio de alegria. Pulei em compasso de fuga. O Urutau deslocou-se até o pé de tamarindo. Sem olhar para trás. Eu me banhei de verde. Talvez fosse esse meu último pedido.
quarta-feira, 6 de maio de 2009
A vela, a água e os corpos
segunda-feira, 4 de maio de 2009
http://www.trezentos.blog.br/
sexta-feira, 1 de maio de 2009
Para além do tempo
Nesse presente, movo-me sob domínios férteis e gentis. Um amor me tomou as mãos, desvendou o segredo entre lábios e me fez alcançar outra dobra de chão. Preparei um vestido branco de algodão e vou trançar no cabelo flores de jasmim. Até o coreto da praça se enfeitará de música e fanfarra. Quero uma canção capaz de despertar cidades adormecidas. Vou ser a primeira a levantar a barra do vestido e rodopiar. Eu pedi para que minhas amigas e amigos falem bem de mim e de você ao santo protetor de amores nascentes. Ele é Rafael, arcanjo que brinca comigo de vale tudo. Eu digo o nome do desejo e ele me traz a glória. Ganhei um anel com pedrinhas que brilham alegria e confirmam a mulher escolhida.
As vozes de ontem ecoarão em campos vastos de infinitivos verbos futuro: criarei, fecundarei, morrerei banhada de vida. Até que o corpo mova-se em partículas de luz e atravesse barreiras do tempo. O amor dará passagem em ritos de fertilidade. Eu serei terra plantada de colheita farta. Filhos de todos os continentes me prosseguirão. Um vento veloz e aves de arribação espalharão sementes. Estará escrito: ela atravessou cancelas.
domingo, 26 de abril de 2009
Carta para uma deusa com um p.s para Deus
para Suely
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Desarnada
quinta-feira, 16 de abril de 2009
A guardiã do tempo, a manga e o amor
Eu trago aqui Dona Cosminha, essa senhorinha de 90 anos, para dizer do amor. Num final de tarde, na sua sala ela me indaga - bichinha você sabe o que é um grande amor? Meio sem jeito respondi, acho que sei e em seguida indaguei – por que Dona Cosminha? Ela se levanta, mostra uma frondosa mangueira e narra sua história com os olhos banhados de imagens.
Fiquei plantada no silêncio. Diante dos meus olhos havia passagem para uma mangueira carregada de lembranças. O que diriam os filmes marcados pelo drama, os romances conturbados, os poemas sôfregos e os capítulos passionais de novelas diante daquela forma de amar mesclada aos ritos do tempo de plantar, colher e dividir ? E eu, teria algo a dizer? Olhei por dentro da minha paisagem amorosa e vi extensões de terras a semear. Eu me perco dentro do meu próprio chão. Haveria algum fruto entornado ao relento? Olhei para ela, que se diz agora minha mãe preta e revelei, com o coração apertado – preciso aprender sobre o tempo Dona Cosminha, água benta capaz de molhar e fazer vicejar uma história de amor. Desde esse dia plantei uma árvore.
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Abismo
segunda-feira, 6 de abril de 2009
Suaves armadilhas
Do meu lugar floresta te vejo. Uma visão fosforescente de bicho que espreita o alvo. A rede atirada rente ao chão detém e enlaça o objeto do desejo. Você presa, pulsa de vontade. Há pressentimentos de que minha chegada restaurará aquele som-gemido que agita noites e burla posições horizontais. Eu não tenho modos. Meus dedos deslizam por cada nó e lambem as marcas da espera. Eu desenlaço os fios da imaginação. Tenho lápis de todas as cores. Fiz uma borboleta de traço livre no teu ombro esquerdo. Aprendi a fazer fitas e desatá-las com a ponta dos dedos e dos dentes. Alcanço o lugar do labirinto e miro teus olhos inquietos. Entrelaçados aos meus pés. E miro até nem saber onde estou. Você sabe que posso me perder.
Quer que eu te solte?
Você se contorce e eu me deito sobre tuas costas. Cada uma das palmas de minhas mãos toca teus ouvidos. Abro pequenas conchas e falo baixinho: tomarei tuas pernas e soltarei as cordas. Soprarei aromas de madeiras sem lei por entre os relevos da paisagem de tua pele. Sei que tu me escutas. Meus olhos centelhas de verão eriçam teus pelos e derramam pequenas brasas. Você aguarda a brisa de orvalho que se espalhará sobre teu corpo feito combustível. Ela se alastra. Ouvi um estouro de boiada. Você escuta fogos de artifício? Eu retornei para a mesma rede em que te encontras. Uma seiva bruta desliza suave entre braços e pernas e nos conduz ao sol. Sou apenas porções de pólen entre teus lábios. É vasta a floresta.
quarta-feira, 25 de março de 2009
Fetiche
Traço fino da meia
preta inter liga
na coxa
o caminho incerto dos teus dedos
Nítido centro
mistério água árdua
no umbigo
a sede do teu dedo em desatino
Salientes seios
vestidos de vermelho
no colo
teus dedos abrem passagem
Transparência da fenda
meio rósea entre abre
no ventre
um lugar para que teus dedos entrem
Abertura dos lábios
molhados de púrpura cor
no rosto
cravam entre os dentes teus dedos
meu corpo,
nas tuas mãos
(para o homem que assim me enxerga)
domingo, 22 de março de 2009
Náufragos
quarta-feira, 18 de março de 2009
Oh pedaço de mim”, oh metade que fala de mim
Eu tenho retido um grito sobre você. Nunca pude dizer do rasgo que me causou esse nascimento ao contrário. Essa canção de ninar presa na garganta. Pressenti que você partiria sem sequer chorar a primeira respiração. Eu preparei panos bordados de borboleta para você, embora meus dedos costurassem vidas tortas. Embora, meu choro de menina ainda se dirigisse para detrás das portas. Eu sei. Você me cresceria e eu abriria janelas para ver passar o tempo de nós duas. Que medo te impediu de ficar aqui? Eu era uma menina esperta. Sabia dos esconderijos que vedariam a aparição de fantasmas e a invasão dos monstros da noite. Eu nunca te diria que eles não existem. Eu os ouço, a cada madrugada, espreitando o sono dos que perderam algo precioso. Dos que se sentem partidos. Eu possuía senhas e ainda as carrego comigo até hoje. Nunca se sabe não é Raquel? Para que elas servem, as senhas? Para que algo dê passagem e não te conseguiria dizer mais nada. Eu me disfarço de mim mesma, brincaríamos de personagens. Uma mulher precisa de muitas peles. Poderia ter te conduzido no meu colo e nos salvado. Eu tinha um avião a nossa disposição. Nem te mostrei minha cidade em miniatura, toda feita de papelão e imaginação. Era povoada. Eu guardei minhas bonecas para te dar, com roupinhas costuradas na agulha e linha. Elas iriam te receber de braços abertos mesmo você sendo minha. Essa sua vi(n)da sem chegada deixou uma parte de mim exilada. Eu te digo, essa mulher que escreve, espera ainda essa outra que nunca chegará. Não nos salvaremos e é essa a condição de todas nós. Eu fui tecendo um destino ao que te falta, ao que me falta em cada lugar por onde passo e me permitem fazer nascerem novas escrituras. Desse modo, me acompanhas e eu te faço falar. No meu colo tu dormes e eu amanheço de asas abertas. Não temos nada a perder. Somos pequenos pedaços de palavras que voam como flechas. Arqueiros de um deus sem nome. Eu te carrego, tu me levas e nos deixamos ir. Enlaçadas. Até o ponto mais cego da visão. O infinito.
para Raquel, que hoje teria 30 anos
domingo, 15 de março de 2009
o amante
A cama parecia tão ninho e as pernas dele entre as dela um pergaminho de gentileza. O amor fez germinar esse chão. Ela tem se sentido florescer.
Pensamentos carregados de imagens desenhavam enredos de múltiplas escrituras. Ela tinha urgência. Afinal de contas, as palavras corriam até os dedos e pediam passagem. Sua boca enchia-se de uma saliva quente, mesclando voz e suspense. De quantos nomes se faz uma estória? Elas nascem dos lugares ermos que abrigam imaginação e lembranças que resistem. Ela leu num canto qualquer que era preciso reter-se, conservar os líquidos. Isso lhe pareceu tão kantiano.
Ele beijou suavemente sua boca. Ela entreabriu os lábios. Que importa reter-se? O braço dele pedia que ela guardasse seu sono. O rosto dele se fincava bem no espaço quente entre ombro e pescoço. Ela o acolhia.
E se os personagens fossem luminosos, capazes de apagar asperezas e manchas? Um tivesse nascido marcado pelo elemento terra e outro sob a regência dos ventos. Um lento e o outro tormento. Um asceta o outro vida concreta.
Acabou de cruzar os dedos entre os dela. Ele pressente. Ela manteve-se quieta, como quem também adormece. Permaneceu em vigília até que ele se sentisse amparado por braços e pernas. Um sono tingido de esquecimento.
Havia chegado o momento esperado. Ela poderia deixá-lo. Finalmente, sua vontade se moveria sem a contagem das horas e sem olhos para ver. O deserto ocupou a casa. Havia lugar para o segredo aguardado por ela. Andou pés sob pés até a sala. Inundada. Tomou a caneta entre os dedos e dispôs o papel em branco diante do corpo. Com pudor, foi retirando todas as vestes das palavras. Peça por peça. Tremulando em cada tentativa de toque. Estreitando-se ao ponto mínimo de distância entre vontade e linguagem. Uma corrente transforma duas partes em uma só coisa. Deixa-as escorrer até aqui, diante de seus olhos. E você leitor faz parte dos rascunhos de uma estória de amor.
sábado, 14 de março de 2009
selo
quinta-feira, 12 de março de 2009
Comme la vague
“- Je t'aime je t'aime Oh oui je t'aime. - Moi non plus - Oh mon amour. Tu es la vague, moi l'île nue. Tu vas, tu vas et tu viens. Entre mes reins. Tu vas et tu viens. Entre mes reins. Et je te rejoins.”
A lembrança da mão dele enlaçando suas costas um pouco nuas. O lábio deslizando na orelha em segredo a melodia: eu te detenho. As coxas comprimiam-se insones. Seu ventre se movia até alcançar um lugar de dentro. Achar o ponto, soltar, reter, sem parar. As pernas buscavam um lugar tocado pelo movimento. Calor no corpo dela. A morte é uma presença que emite sinais. Embora se avizinhe como rumor de águas à deriva, em curso de enchente. Maria seguiu a velocidade da luz, mesmo cega. Como já foi dito, o ponteiro do relógio devia marcar umas oito horas de noite. Todos na casa assistiam à novela “Selva de Pedra”. Por tal razão ela recorda o horário em que o mundo parou. Um suor quente, seco, fazia brasa na pele. Em cada lugar, um coração pulsava desenfreado. Ela alcançou o ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto. Assistiu, sem precisar de olhos para ver, uma explosão espalhar-se para além do seu corpo. Imaterial e nítida. Gritando uma descoberta. Foi quando a mãe bradou: essa menina morreu foi? E Maria respondeu – Morri, mas já passou. Deitou- se aninhada, com a respiração abrandada e um sorriso desenhado no canto da boca. De ser mulher.
sábado, 7 de março de 2009
A deusa, os óculos e o milagre
Atravessei o silêncio e me detive.
Ouvi o piano de minha avó ir deslizando as quatro estações de Vivaldi. Lá fora tudo era inverno! Ela trazia nas mãos a intenção de assoprar música. Feito gaivota. Ao lado do piano uma mulher dançava sem vestes e sem medo. Era a mãe. Embora, tenha vivido um tormento de nascença, trazia verão. Cada átimo de luz cadenciava sua presença. Ao seu lado, uma menina atravessava o tempo. Falava através dos olhos, pernas, orelhas, língua, sexo e umbigo. Tinha uma primavera desenhada no ventre. Fertilidade de acordes musicais. Que nem fruta madura no outono de outro tempo.
Nunca retornei. Permaneci enlaçada às fêmeas de todas as estações. Feito eros, feito borra, feito ventre, fazendo jus a tudo que é inútil e belo. Elas tomam cada um dos meus dedos e escrevem em letras de fogo. A deusa que me habita é mestiça, um punhado de cada uma e um tanto que nem me pertence. Esse é o meu primeiro milagre. O fundador. Por isso, mesmo profano e mundano não seria ele extraordinário? Acredito. Eu sou quatro estações. E você?
terça-feira, 3 de março de 2009
Sentimental eu sou
sábado, 28 de fevereiro de 2009
acordada
(para o homem que enxerga, mesmo que faça escuro)
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
auto-retrato
O verde fala de mim
A chuva fez esse acontecimento
Tenho a planta dos pés banhada da seiva dos andarilhos
Raízes me assanham os cabelos
Eu vento
Entremeada aos fios de dois
Tenho amor brotado na palma da mão
E um pássaro pousado na testa
Suas asas aninham
Eu me assento
Não tenho vergonha de dizer que sinto
Uma ausência de nascença
Coração semeando intensidades
Amores-seiva respingando pétalas
Flores sem alento
Embora teu amor segure minhas mãos
E a brisa toque delicada as palavras
O susto é disparado
Na vastidão da floresta
Fazendo sempre-verde o sentimento
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
o carnaval da linha
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Argonauta
Trago um olhar vasto
Que nem cabe em oceanos
Sobrevivo navegando linhas
Sou grata às palavras
Elas me produzem terras
Fincadas na palma dos pés
Tenho pressentimentos de gaivota
Diante das asas da imensidão
Embora as alturas me tonteiem.
Aprendi a segurar tuas mãos
Infinitos novelos de chão
E assoprar meu medo
De vastidão
Tu me recebes transbordada
Em teu colo quente
Finca tua âncora
Eu ninho
Quando subir alto, meu bem
Você tem a linha
Segura com a ponta dos dedos
Eu voarei sozinha.
(para a mulher que enxerga)
domingo, 15 de fevereiro de 2009
Navegar é (im) preciso
Fayga, Danni e Laura vocês entoam mar adentro as “palavras de pórtico” de Fernando Pessoa:
“Navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para casar com o que sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar”
Terra a vista!
domingo, 8 de fevereiro de 2009
Sob as asas do silêncio (epílogo)
Klimt