Era por volta de oito horas da noite quando o mundo acabou. Maria viu uma réstia de luz cruzar a janela. Feito serenata. A lua estava cheia de beirar de prata os olhos dela. Amendoados, escorridos, que nem melaço de cana recém saído da caldeira. Seus olhos eram fartos e fixos. Um mundo não acaba sem que seja removido um ponto qualquer de sustentação. Houve prenúncios. Estava agitada, assim como o mar. Seus cabelos suspendiam-se arredios, acima da cabeça, tomando a forma de algas enleadas a conchas e pedras. Os fios eram enrolados até quebrarem, um a um. Ela abria e fechava as pálpebras em movimentos contínuos. Suas mãos apertavam à outra, comprimiam os dedos, dobrava-os, até ouvir estalos. Um pedaço de lábio era repetidamente mordido e, e em seguida, experimentado com a ponta da língua. Insônia no quarto dela. Acordes musicais simulavam brincadeiras de fazer dançar o corpo na cama. A voz rouca de Gainsbourg fazia dueto com Jane Birkin
“- Je t'aime je t'aime Oh oui je t'aime. - Moi non plus - Oh mon amour. Tu es la vague, moi l'île nue. Tu vas, tu vas et tu viens. Entre mes reins. Tu vas et tu viens. Entre mes reins. Et je te rejoins.”
A lembrança da mão dele enlaçando suas costas um pouco nuas. O lábio deslizando na orelha em segredo a melodia: eu te detenho. As coxas comprimiam-se insones. Seu ventre se movia até alcançar um lugar de dentro. Achar o ponto, soltar, reter, sem parar. As pernas buscavam um lugar tocado pelo movimento. Calor no corpo dela. A morte é uma presença que emite sinais. Embora se avizinhe como rumor de águas à deriva, em curso de enchente. Maria seguiu a velocidade da luz, mesmo cega. Como já foi dito, o ponteiro do relógio devia marcar umas oito horas de noite. Todos na casa assistiam à novela “Selva de Pedra”. Por tal razão ela recorda o horário em que o mundo parou. Um suor quente, seco, fazia brasa na pele. Em cada lugar, um coração pulsava desenfreado. Ela alcançou o ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto. Assistiu, sem precisar de olhos para ver, uma explosão espalhar-se para além do seu corpo. Imaterial e nítida. Gritando uma descoberta. Foi quando a mãe bradou: essa menina morreu foi? E Maria respondeu – Morri, mas já passou. Deitou- se aninhada, com a respiração abrandada e um sorriso desenhado no canto da boca. De ser mulher.