quarta-feira, 25 de março de 2009

Fetiche



Traço fino da meia
preta inter liga
na coxa
o caminho incerto dos teus dedos


Nítido centro
mistério água árdua
no umbigo
a sede do teu dedo em desatino


Salientes seios
vestidos de vermelho
no colo
teus dedos abrem passagem


Transparência da fenda
meio rósea entre abre
no ventre
um lugar para que teus dedos entrem


Abertura dos lábios
molhados de púrpura cor
no rosto
cravam entre os dentes teus dedos


meu corpo,
nas tuas mãos

(para o homem que assim me enxerga)

domingo, 22 de março de 2009

Náufragos

Juan Miró

Eu não soube dizer adeus. Você me buscava as mãos navegando um mar de delicadeza em meio à turbulência. Ausentei-me de um continente de nós dois ainda mergulhada em abraços. Teus pés se entrelaçavam aos meus debaixo dos lençóis, cada vez que os trovões rugiam céu afora. Lembro que você me laçava ensaiando gestos de salvação. As ondas eram tão altas meu bem e tão frágil a embarcação. Eu não sabia e nem sei nadar. Embora você me segredasse nós-dois-para-sempre, eu calculei o tempo. O medo é uma forma de distrair a razão. Fui arrastada pela correnteza sinuosa do temor da entrega. Você não fez respiração. Alguém ouviu falar dessa natureza das águas? Elas se aproximam sem fazer alarde. Uma nau sem asas nem velas me conduziu para longe de tua terra. Você me seguiu mar-adentro feito escafandrista na mira de um navio valioso naufragado em domínio incerto. Seu olhar vagou as profundezas e eu elemento ar flutuei superfícies. Fala a lenda que aportei. Hoje sou ilha e semeio silêncio em todos os dialetos. Isso não me remove a tolice típica dos sobreviventes. Ninguém pense que exibo troféus desse selvagem torrão de terra. Sou inexata ao falar de um amor que o mar trouxe feito dádiva e carregou. Não busque em meu olhar alguma forma de explicação. Pouco importa é o que resta a dizer quando tudo faz diferença. Aprendi a mentir acumulando verdades. Eu tenho provas cabais de que a tempestade pode ser uma forma de travessia. Longe da tua boca pude fundar uma nova língua. Ela emite sinais para viajantes de todas as partes. A luz do farol quando apaga, acendo coragem com fogo de lenha. Minha avó do vale do Jaguaribe me ensinou a retirar do mato os galhos mais combustíveis. Nem por isso me livro dos frios de tua ausência. Contento-me em plantar cada palmo do lugar. Tenho adubos que trazem sementes com vontade de brotar. Nem mesmo assim me livro dos desertos. Em teu mundo existe um dito capaz de fazer vicejar. Meu corpo não esquece, nem desiste. Na minha garganta estreitada ecoa socorro com gosto de criação. Eu grito terra me avista e do lado do abismo é lançado um bote salva-vidas. Perdão. Eu não tenho abraços que me façam ficar. Minha dor lança cordas a bombordo e teu nome a estibordo. Em que momento a tempestade te arrastou de volta aos musgos, pedras e gritos dos lugares ermos de mim? Eu nunca saberei dizer adeus. Entre meus dedos encontro fios de teus cabelos enroscados à minha solidão. Você náufrago de mim, eu de você. Navegará entre nós uma palavra de salvação?

quarta-feira, 18 de março de 2009

Oh pedaço de mim”, oh metade que fala de mim




Eu tenho retido um grito sobre você. Nunca pude dizer do rasgo que me causou esse nascimento ao contrário. Essa canção de ninar presa na garganta. Pressenti que você partiria sem sequer chorar a primeira respiração. Eu preparei panos bordados de borboleta para você, embora meus dedos costurassem vidas tortas. Embora, meu choro de menina ainda se dirigisse para detrás das portas. Eu sei. Você me cresceria e eu abriria janelas para ver passar o tempo de nós duas. Que medo te impediu de ficar aqui? Eu era uma menina esperta. Sabia dos esconderijos que vedariam a aparição de fantasmas e a invasão dos monstros da noite. Eu nunca te diria que eles não existem. Eu os ouço, a cada madrugada, espreitando o sono dos que perderam algo precioso. Dos que se sentem partidos. Eu possuía senhas e ainda as carrego comigo até hoje. Nunca se sabe não é Raquel? Para que elas servem, as senhas? Para que algo dê passagem e não te conseguiria dizer mais nada. Eu me disfarço de mim mesma, brincaríamos de personagens. Uma mulher precisa de muitas peles. Poderia ter te conduzido no meu colo e nos salvado. Eu tinha um avião a nossa disposição. Nem te mostrei minha cidade em miniatura, toda feita de papelão e imaginação. Era povoada. Eu guardei minhas bonecas para te dar, com roupinhas costuradas na agulha e linha. Elas iriam te receber de braços abertos mesmo você sendo minha. Essa sua vi(n)da sem chegada deixou uma parte de mim exilada. Eu te digo, essa mulher que escreve, espera ainda essa outra que nunca chegará. Não nos salvaremos e é essa a condição de todas nós. Eu fui tecendo um destino ao que te falta, ao que me falta em cada lugar por onde passo e me permitem fazer nascerem novas escrituras. Desse modo, me acompanhas e eu te faço falar. No meu colo tu dormes e eu amanheço de asas abertas. Não temos nada a perder. Somos pequenos pedaços de palavras que voam como flechas. Arqueiros de um deus sem nome. Eu te carrego, tu me levas e nos deixamos ir. Enlaçadas. Até o ponto mais cego da visão. O infinito.


para Raquel, que hoje teria 30 anos

domingo, 15 de março de 2009

o amante


Seu coração batia aos pulos. Ela pedia para que ele aguardasse o momento certo. Que não misturasse os fatos. Que cada estremecimento escoasse no exato instante em que as portas se abrissem. Sempre fora precipitada.

A cama parecia tão ninho e as pernas dele entre as dela um pergaminho de gentileza. O amor fez germinar esse chão. Ela tem se sentido florescer.

Pensamentos carregados de imagens desenhavam enredos de múltiplas escrituras. Ela tinha urgência. Afinal de contas, as palavras corriam até os dedos e pediam passagem. Sua boca enchia-se de uma saliva quente, mesclando voz e suspense. De quantos nomes se faz uma estória? Elas nascem dos lugares ermos que abrigam imaginação e lembranças que resistem. Ela leu num canto qualquer que era preciso reter-se, conservar os líquidos. Isso lhe pareceu tão kantiano.

Ele beijou suavemente sua boca. Ela entreabriu os lábios. Que importa reter-se? O braço dele pedia que ela guardasse seu sono. O rosto dele se fincava bem no espaço quente entre ombro e pescoço. Ela o acolhia.

E se os personagens fossem luminosos, capazes de apagar asperezas e manchas? Um tivesse nascido marcado pelo elemento terra e outro sob a regência dos ventos. Um lento e o outro tormento. Um asceta o outro vida concreta.

Acabou de cruzar os dedos entre os dela. Ele pressente. Ela manteve-se quieta, como quem também adormece. Permaneceu em vigília até que ele se sentisse amparado por braços e pernas. Um sono tingido de esquecimento.

Havia chegado o momento esperado. Ela poderia deixá-lo. Finalmente, sua vontade se moveria sem a contagem das horas e sem olhos para ver. O deserto ocupou a casa. Havia lugar para o segredo aguardado por ela. Andou pés sob pés até a sala. Inundada. Tomou a caneta entre os dedos e dispôs o papel em branco diante do corpo. Com pudor, foi retirando todas as vestes das palavras. Peça por peça. Tremulando em cada tentativa de toque. Estreitando-se ao ponto mínimo de distância entre vontade e linguagem. Uma corrente transforma duas partes em uma só coisa. Deixa-as escorrer até aqui, diante de seus olhos. E você leitor faz parte dos rascunhos de uma estória de amor.

sábado, 14 de março de 2009

selo


Recebi um selo do Fred do blog "nas horas e nas horas e meia". Ao receber o selo, citar 7 coisas que te fazem sorrir:
1) O ato de nascer.
2) O ato de viver em comunhão;
3) O ato de amar;
4) O ato de cuidar,
4) Os atos dos cinco sentidos;
5) O ato de dar e receber;
6) O ato de rir à toa,
7) O ato de morrer com vida.
Indicar 7 blogs que fazem você sorrir
1) Sem mais delongas
2) Insulfilme;
3) Carpe Diem
4) A Torre Mágica
5) Som-cor-ação
6) Infinita-Mente
7) O ser em movimento
Informar aos blogs indicados que eles receberam o selo


quinta-feira, 12 de março de 2009

Comme la vague


Era por volta de oito horas da noite quando o mundo acabou. Maria viu uma réstia de luz cruzar a janela. Feito serenata. A lua estava cheia de beirar de prata os olhos dela. Amendoados, escorridos, que nem melaço de cana recém saído da caldeira. Seus olhos eram fartos e fixos. Um mundo não acaba sem que seja removido um ponto qualquer de sustentação. Houve prenúncios. Estava agitada, assim como o mar. Seus cabelos suspendiam-se arredios, acima da cabeça, tomando a forma de algas enleadas a conchas e pedras. Os fios eram enrolados até quebrarem, um a um. Ela abria e fechava as pálpebras em movimentos contínuos. Suas mãos apertavam à outra, comprimiam os dedos, dobrava-os, até ouvir estalos. Um pedaço de lábio era repetidamente mordido e, e em seguida, experimentado com a ponta da língua. Insônia no quarto dela. Acordes musicais simulavam brincadeiras de fazer dançar o corpo na cama. A voz rouca de Gainsbourg fazia dueto com Jane Birkin

“- Je t'aime je t'aime Oh oui je t'aime. - Moi non plus - Oh mon amour. Tu es la vague, moi l'île nue. Tu vas, tu vas et tu viens. Entre mes reins. Tu vas et tu viens. Entre mes reins. Et je te rejoins.”

A lembrança da mão dele enlaçando suas costas um pouco nuas. O lábio deslizando na orelha em segredo a melodia: eu te detenho. As coxas comprimiam-se insones. Seu ventre se movia até alcançar um lugar de dentro. Achar o ponto, soltar, reter, sem parar. As pernas buscavam um lugar tocado pelo movimento. Calor no corpo dela. A morte é uma presença que emite sinais. Embora se avizinhe como rumor de águas à deriva, em curso de enchente. Maria seguiu a velocidade da luz, mesmo cega. Como já foi dito, o ponteiro do relógio devia marcar umas oito horas de noite. Todos na casa assistiam à novela “Selva de Pedra”. Por tal razão ela recorda o horário em que o mundo parou. Um suor quente, seco, fazia brasa na pele. Em cada lugar, um coração pulsava desenfreado. Ela alcançou o ponto em que o silêncio e o prazer falam um mesmo dialeto. Assistiu, sem precisar de olhos para ver, uma explosão espalhar-se para além do seu corpo. Imaterial e nítida. Gritando uma descoberta. Foi quando a mãe bradou: essa menina morreu foi? E Maria respondeu – Morri, mas já passou. Deitou- se aninhada, com a respiração abrandada e um sorriso desenhado no canto da boca. De ser mulher.

sábado, 7 de março de 2009

A deusa, os óculos e o milagre

Ismael Nery

Eu penso que sou milagreira. Nunca entendi a razão dos milagres serem domínios de santos e beatos. E que sigam trilhas de registro: devam ser comprovados, encaminhados ao Vaticano e celebrados como verdade. Quando aconteceu meu primeiro fato extraordinário, tinha apenas sete anos. Nunca tentei convencer ninguém. E precisa? Havia acabado de ganhar uns óculos escuros de plástico e um chapéu de couro. O sertão da Jaguaribe embaçava a minha visão. Via o mundo sob um mormaço avermelhado, recoberto de poeira e luz. O catolicismo era a única forma de invocação divina. Eu sabia que havia nascido da promessa que minha mãe fizera a Iemenjá. Era o nosso segredo. Eu tinha uma dupla filiação materna. Enquanto as meninas do colégio de freiras se ajoelhavam e entoavam cânticos e orações para aquela nossa senhora azulzinha com branca, eu buscava outro ponto de visão. Ia delineando-se fora de qualquer altar um vulto de cabelos desalinhados, pés descalços e ondas de espumas de todas as cores adornando seus movimentos. Paradoxalmente, o mormaço do sertão encobria seu corpo. Algo de quente, de visceral, de luminoso tangia essa presença. Ela cintilava uma despudorada alegria. Não ficava parada que nem a outra, aguardando o anjo do milagre. Assim, me conduzia. Ao fechar os olhos, a deusa me tomava às mãos em direção incerta. Do milagre de nós duas. Houve o primeiro.



Atravessei o silêncio e me detive.



Ouvi o piano de minha avó ir deslizando as quatro estações de Vivaldi. Lá fora tudo era inverno! Ela trazia nas mãos a intenção de assoprar música. Feito gaivota. Ao lado do piano uma mulher dançava sem vestes e sem medo. Era a mãe. Embora, tenha vivido um tormento de nascença, trazia verão. Cada átimo de luz cadenciava sua presença. Ao seu lado, uma menina atravessava o tempo. Falava através dos olhos, pernas, orelhas, língua, sexo e umbigo. Tinha uma primavera desenhada no ventre. Fertilidade de acordes musicais. Que nem fruta madura no outono de outro tempo.

Nunca retornei. Permaneci enlaçada às fêmeas de todas as estações. Feito eros, feito borra, feito ventre, fazendo jus a tudo que é inútil e belo. Elas tomam cada um dos meus dedos e escrevem em letras de fogo. A deusa que me habita é mestiça, um punhado de cada uma e um tanto que nem me pertence. Esse é o meu primeiro milagre. O fundador. Por isso, mesmo profano e mundano não seria ele extraordinário? Acredito. Eu sou quatro estações. E você?

terça-feira, 3 de março de 2009

Sentimental eu sou




O nome dele eu não lembro. Todos o chamavam de Teto. Era filho do dentista da casa do lado. Eu a filha do chefe da carteira agrícola do Banco do Brasil que acabara de chegar do Rio de Janeiro. As casas de fachada contínua nos traziam os risos, conversas, choros e segredos de lado de lá. Eu despertava com ecos de sua voz rouca pedindo o leite matinal. Ele era chorão e barulhento. Eu o conhecia através dos sons que atravessavam as paredes. As calçadas margeavam os finais de tarde. Numa delas, sentamos em cadeiras de balanço de vime alinhados numa cena familiar. A radiadora anunciava a próxima música e os olhos de minha mãe marejaram quando a voz do apresentador disse – como boas-vindas para a família que acaba de chegar, ouviremos Altemar Dutra. “Sentimental eu sou, eu sou demais, eu sei que sou assim porque assim ela me faz”. Foi quando escutei o grito costumeiro da vizinha quebrar o idílio do momento - esse menino me tira do sério. Era ele. Suas calças frouxas e pés descalços, a correria desenfreada, um jeito de passar o braço na testa e remover o suor, as maças do rosto tão vermelhas; tudo isso dizia do abismo entre os nossos oito anos. O meu vestido rodado, engomado, me fazia quase estática, uma boneca. Montado num cabo de vassoura ele percorria a calçada que nem vaqueiro tangendo o gado no mato. Eu não estava ali. Queria luz elétrica, os parquinhos de Copacabana, o cinema, os passeios de bonde e o mar brincando de molhar meus pés. Eu desconhecia as veredas do mato. Ele não quis saber, me puxou pela mão e disse - tu quer passear no meu cavalo, eu te levo na garupa. Eu podia muito bem ter lembrado o meu vestido todo armadinho de grude, do meu cabelo de franjinha definida e do sapato de verniz com uma meia bordadinha. Eu podia ter permanecido sentada. Ali eu desenhei o meu destino de mulher. Olhei para o vaqueiro, vi a velocidade do seu cavalo sem cela, nem rédeas, nem direção. Seus olhos verdes de bicho solto, bicho do mato, bicho tinhoso; me fiz correr léguas no dorso do seu cavalo. Eu me tornei a namorada do vaqueiro. Um dia, num passeio de Jipe, nas trilhas incertas do sertão, o meu pai na direção, as crianças atrás; ele passou as mãos por detrás das minhas costas. Tocou levemente as minhas e perguntou baixinho – quer casar comigo? Quando o pipoqueiro de Russas passava e anunciava – pipoca mineral de água e sal, ele corria em minha direção. Corria para evitar que a minha fome de pipoca, adiasse seus planos. Desenhava um olhar grave e me falava - vamos guardar o dinheiro para o nosso casamento. Foram cinco anos. O Teto apenas tocou minhas mãos e entrelaçou dedos com dedos. Apenas derramou seu olhar em correnteza bravia sobre os meus olhos tão atrapalhados e ávidos por luz. Ele me conduziu em seu cavalo indomável, eu aprendi a me deixar levar. Banhou meus pés de ternura e enlevo. Algumas vezes eu tomei a direção e o conduzi alinhado em minhas costas. Ele fechava os olhos e eu o arrebatava em desatino, ultrapassando cercas e matas fechadas. Um dia, fui embora a galope. Dividimos o dinheiro do nosso casamento num final de tarde chuvoso. Na radiadora tocava Rita Pavone, eu dançava em plena calçada, ia até o chão. Ele sabia do que eu era capaz, sempre soube e eu carrego até hoje essa intenção. Por isso, quando você me vê, imagina um cavalo em disparada. Sobe na cela da imaginação. Eu, indomável, te conduzirei. Você deitará tua cabeça em meus ombros, fechará os olhos e dirá: pode soltar as rédeas. E voaremos.