segunda-feira, 29 de junho de 2009

A armadura do guerreiro e as asas da feticeira (parte dois)


Camille Claudel

Raquel cerra os olhos, aperta as pálpebras até que o medo seja revertido em escuridão. A cancela do olhar é sua única via de fuga. Ela se encolhe e esconde a cabeça entre braços e pernas. Um rasgo de choro invade o silêncio dos gestos. O homem permanece ao seu lado. Em seu rosto delineia-se uma grave expressão de incredulidade. Uma mulher condenada por todo tipo de sortilégios não tremeria tanto diante do inusitado. Por outro lado, um homem que apenas conhece o poderio da força física não tem como esboçar temor diante da magia de uma mulher seguramente acorrentada. Ele havia escutado por todo o reino estórias prodigiosas acerca da feiticeira. Era alardeado aos quatro cantos seu poder de curar, predizer o futuro e o de provocar paixões passionais e traiçoeiras. Raul, o carcereiro, fora advertido para que em nenhum momento mirasse os olhos da presa. Seus movimentos no calabouço eram tão limitados quanto os de Raquel. O corpo de um homem e de uma mulher sabe das ondulações do desejo, mesmo que falte a vibração das palavras. Raul era um mouro destemido e, por isso mesmo, se julgava inabalável. Já fizera parte das linhas de frente das cruzadas e considerava o calabouço o lugar para um breve descanso. Costumava dizer que seu corpo era armadura e por isso dispensava escudos. Havia ganho a alcunha de gigante e essa batalha era considerada a mais branda de sua vida. Uma mulher com correntes envolvendo cada braço, pernas e por volta do pescoço parecia não oferecer ao lutador nenhuma espécie de risco. Ele estava à salvo, afora algumas zonas de percepção consideradas as mais valiosas armas do carcereiro. Seu faro de caçador, seu ouvido de predador, seu olhar de tiro certeiro. Todos os sentidos estavam ativados para o bem e para o mal. Os ouvidos não têm pálpebras e os olhos não sustentam invólucros de ferro. Ele não contava com a imagem de pingos de água deslizando por sobre os seios brancos de Raquel. Ele não imaginava que seus cabelos pretos volumosos tangenciassem a cintura e emoldurassem uma beleza de fêmea selvagem. Ele muito menos antevia a delicadeza e o silêncio aquietado na superfície da pele e dos gestos de uma mulher entre correntes. Ao deixar-se embeber por cada gota, ao burlar nós, cadeados e cancelas Raul foi sacudido pelo pranto ruidoso de Raquel. Ele não apreendeu esses golpes. O que fazer? Repentinamente, o carcereiro toma as chaves e afrouxa o metal que envolve o pescoço da mulher. As mãos ásperas do homem percorrem o caminho de lágrimas. Em seguida, seus dedos entrelaçam os fios do cabelo de Raquel em movimentos contínuos de cima até alcançar às pontas. Uma a uma. Havia um tempo sem que nada fosse dito. Apenas ruídos. O corpo é que fala as palavras. Cada fio desalinhado de cabelo, cada ternura deslizada parecia romper um quantum de sons abafados. Como rito primeiro de criação do mundo, Raquel fixa a visão em direção aos olhos do carcereiro e entoa uma canção. Um som modal, como um tufão de intensidade liberta o gemido acorrentado da feiticeira. O encantamento se sobrepôs à paisagem. Um corpo de mulher avoa livre em meio a escuridão. Não havia mais correntes nem armaduras. Apenas o coração de um homem abrigado nas asas de uma mulher.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

As correntes do desejo - parte um

Camille Claudel

As correntes contornavam pernas e braços. Uma réstia de luz perfurava o topo da parede e incidia no dorso da mão esquerda. Ali, não havia tempo. Era lua cheia ou apenas um raio de sol cruzava o escuro de uma noite que parecia eterna? Raquel sentou cambaleante e deslizou o olhar sobre o corpo até alcançar os pés. Não fazia calor nem frio. O vestido azul-turquesa aveludado compunha com os olhos um infinito céu de tristeza e ausência. Seus seios pareciam ter escapado do vestido. Sede, muita sede. A vista turva fez girar o lugar. Ela tenta levantar-se e é imediatamente impedida devido ao peso das correntes e a um outro, invisível, que se instala no vácuo das lembranças. Os músculos do corpo de um homem e de uma mulher têm o tônus fortalecido por cada fragmento da memória que permanece. Raquel perdeu os fios narrativos de uma história que precisou ser apagada. Ela se curva e aguarda a entrada do carcereiro. O rangido da porta de madeira sendo arrastada no chão de pedra confunde-se com a voz daquele que a mantém sob vigília. Ela nunca ouvira um som desde o momento em que fora recolhida ao calabouço. Raquel recosta-se na parede esburacada, coberta de limo e recebe comida e água. Em seguida, suspende os olhos com a bacia nas mãos e entorna o líquido. A sede faz escorrer, já a fome não deixa escapar nenhuma migalha. Os olhos do carcereiro seguiram o destino da água e devoraram cada parte descoberta do corpo de Raquel. Ele tinha cílios fartos, caindo por sobre olhos cansados de atravessar abismos de mãos vazias. Uma mulher sabe quando um homem permanece deserto. Ela arrastou-se, segurou cada uma das pernas do carcereiro e se recostou. Os cabelos longos de Raquel vestiram seu rosto e penderam aos pés do homem. Ele se acocorou, tomou-a entre as mãos, afastou os cabelos da mulher e passou a língua em cada gota de água que permanecia em seu queixo, por sobre o pescoço e por entre os seios. Raquel deitou seus olhos de cor amarela, imprecisos como fachos de luz em flecha veloz. O homem sentiu correntes de calor enredar braços e pernas, enlaçar pontos de cruzamento entre vigília e vontade. A chave perdeu-se do lugar-passagem. Não havia saída. Estavam presos.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

As veredas do olhar




Eu aprendi a cavar com as mãos as dobras do silêncio. As coisas ditas podem receber camadas e mais camadas de esquecimento ou de recusa. Ele cruzou a passagem secreta, logo no primeiro dia. Eu sempre preferi ficar nas últimas cadeiras da fila. Passar despercebida em sala era uma forma de deixar espaço para o devaneio. O professor de literatura era tão magrinho que as pernas davam voltas ao se cruzarem debaixo do birô. Isso acentuava o tamanho de seus olhos e o mover-se rápido das retinas. Foi assim que senti a pegada do seu olhar alcançar uma impenetrável zona de reserva. A aula era sobre “Dom Casmurro” e todo o afã de Rosilmar era o de tentar descrever o que denominava da personalidade felina de Capitu. O nome dele era esse mesmo: Rosilmar. Fiquei ensaiando indagar – professor esse achado se deve a uma junção do nome do pai e da mãe ou do mar e da rosa? Naquele momento, nos mudos anos setenta, perguntar podia entreabrir zonas de risco. Como já falei, a penúltima cadeira era um refúgio seguro e mudo. Ele chegou, fez a chamada e não sentou nenhum segundo a mais. Movia-se percorrendo filas de carteiras ocupadas pelas tantas meninas-virando-moça. A ordem era despistar das freiras austeras a malícia que, sorrateiramente, teimava em deslizar. Todas as manhãs, as bainhas das saias eram observadas durante o cântico bocejado do “Alô, bom dia, oh como vai você”. Esconder era o modo possível de carregar o proibido. Os olhos verdes e famintos do professor arrastavam-se de carteira em carteira. Enquanto isso, ele lia, em voz alta, trechos diversos que diziam dos mistérios de Capitu. Falava de mulher da forma que eu apenas acabara de pressentir. Pedi a Deus para que ele não me alcançasse. Foi quando, repentinamente, Rosilmar mudou a cadência dos passos e parou ao meu lado. Foram segundos de uma perplexidade mútua com sopros de eternidade. Ele me apontou e falou para a sala em tom de confidência violada, ela aqui carrega o mesmo matiz, o mesmo abismo dos “olhos de ressaca” de Capitu. Eu poderia muito bem ter baixado ou desviado os olhos; poderia ter poupado o homem daquele vexame. Ele desconhecia. Minha tradição é do cangaço, dos duelos de sangue, do galope veloz do cavalo nas veredas. Fui tangendo a vista na direção do professor, lenta e certeira. Tomei o cabresto entre as mãos e disse: os seus trazem maresia e perfume de rosas. O abismo se move sob os pés. Eu aprendi a cavar o mistério.


p.s- minhas ausência de aqui estar, de ler e percorrer todos os escritos que me alumiam, saibam, são atravessadas por muitas, muitas razões. voltarei!