Raquel cerra os olhos, aperta as pálpebras até que o medo seja revertido em escuridão. A cancela do olhar é sua única via de fuga. Ela se encolhe e esconde a cabeça entre braços e pernas. Um rasgo de choro invade o silêncio dos gestos. O homem permanece ao seu lado. Em seu rosto delineia-se uma grave expressão de incredulidade. Uma mulher condenada por todo tipo de sortilégios não tremeria tanto diante do inusitado. Por outro lado, um homem que apenas conhece o poderio da força física não tem como esboçar temor diante da magia de uma mulher seguramente acorrentada. Ele havia escutado por todo o reino estórias prodigiosas acerca da feiticeira. Era alardeado aos quatro cantos seu poder de curar, predizer o futuro e o de provocar paixões passionais e traiçoeiras. Raul, o carcereiro, fora advertido para que em nenhum momento mirasse os olhos da presa. Seus movimentos no calabouço eram tão limitados quanto os de Raquel. O corpo de um homem e de uma mulher sabe das ondulações do desejo, mesmo que falte a vibração das palavras. Raul era um mouro destemido e, por isso mesmo, se julgava inabalável. Já fizera parte das linhas de frente das cruzadas e considerava o calabouço o lugar para um breve descanso. Costumava dizer que seu corpo era armadura e por isso dispensava escudos. Havia ganho a alcunha de gigante e essa batalha era considerada a mais branda de sua vida. Uma mulher com correntes envolvendo cada braço, pernas e por volta do pescoço parecia não oferecer ao lutador nenhuma espécie de risco. Ele estava à salvo, afora algumas zonas de percepção consideradas as mais valiosas armas do carcereiro. Seu faro de caçador, seu ouvido de predador, seu olhar de tiro certeiro. Todos os sentidos estavam ativados para o bem e para o mal. Os ouvidos não têm pálpebras e os olhos não sustentam invólucros de ferro. Ele não contava com a imagem de pingos de água deslizando por sobre os seios brancos de Raquel. Ele não imaginava que seus cabelos pretos volumosos tangenciassem a cintura e emoldurassem uma beleza de fêmea selvagem. Ele muito menos antevia a delicadeza e o silêncio aquietado na superfície da pele e dos gestos de uma mulher entre correntes. Ao deixar-se embeber por cada gota, ao burlar nós, cadeados e cancelas Raul foi sacudido pelo pranto ruidoso de Raquel. Ele não apreendeu esses golpes. O que fazer? Repentinamente, o carcereiro toma as chaves e afrouxa o metal que envolve o pescoço da mulher. As mãos ásperas do homem percorrem o caminho de lágrimas. Em seguida, seus dedos entrelaçam os fios do cabelo de Raquel em movimentos contínuos de cima até alcançar às pontas. Uma a uma. Havia um tempo sem que nada fosse dito. Apenas ruídos. O corpo é que fala as palavras. Cada fio desalinhado de cabelo, cada ternura deslizada parecia romper um quantum de sons abafados. Como rito primeiro de criação do mundo, Raquel fixa a visão em direção aos olhos do carcereiro e entoa uma canção. Um som modal, como um tufão de intensidade liberta o gemido acorrentado da feiticeira. O encantamento se sobrepôs à paisagem. Um corpo de mulher avoa livre em meio a escuridão. Não havia mais correntes nem armaduras. Apenas o coração de um homem abrigado nas asas de uma mulher.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
A armadura do guerreiro e as asas da feticeira (parte dois)
Raquel cerra os olhos, aperta as pálpebras até que o medo seja revertido em escuridão. A cancela do olhar é sua única via de fuga. Ela se encolhe e esconde a cabeça entre braços e pernas. Um rasgo de choro invade o silêncio dos gestos. O homem permanece ao seu lado. Em seu rosto delineia-se uma grave expressão de incredulidade. Uma mulher condenada por todo tipo de sortilégios não tremeria tanto diante do inusitado. Por outro lado, um homem que apenas conhece o poderio da força física não tem como esboçar temor diante da magia de uma mulher seguramente acorrentada. Ele havia escutado por todo o reino estórias prodigiosas acerca da feiticeira. Era alardeado aos quatro cantos seu poder de curar, predizer o futuro e o de provocar paixões passionais e traiçoeiras. Raul, o carcereiro, fora advertido para que em nenhum momento mirasse os olhos da presa. Seus movimentos no calabouço eram tão limitados quanto os de Raquel. O corpo de um homem e de uma mulher sabe das ondulações do desejo, mesmo que falte a vibração das palavras. Raul era um mouro destemido e, por isso mesmo, se julgava inabalável. Já fizera parte das linhas de frente das cruzadas e considerava o calabouço o lugar para um breve descanso. Costumava dizer que seu corpo era armadura e por isso dispensava escudos. Havia ganho a alcunha de gigante e essa batalha era considerada a mais branda de sua vida. Uma mulher com correntes envolvendo cada braço, pernas e por volta do pescoço parecia não oferecer ao lutador nenhuma espécie de risco. Ele estava à salvo, afora algumas zonas de percepção consideradas as mais valiosas armas do carcereiro. Seu faro de caçador, seu ouvido de predador, seu olhar de tiro certeiro. Todos os sentidos estavam ativados para o bem e para o mal. Os ouvidos não têm pálpebras e os olhos não sustentam invólucros de ferro. Ele não contava com a imagem de pingos de água deslizando por sobre os seios brancos de Raquel. Ele não imaginava que seus cabelos pretos volumosos tangenciassem a cintura e emoldurassem uma beleza de fêmea selvagem. Ele muito menos antevia a delicadeza e o silêncio aquietado na superfície da pele e dos gestos de uma mulher entre correntes. Ao deixar-se embeber por cada gota, ao burlar nós, cadeados e cancelas Raul foi sacudido pelo pranto ruidoso de Raquel. Ele não apreendeu esses golpes. O que fazer? Repentinamente, o carcereiro toma as chaves e afrouxa o metal que envolve o pescoço da mulher. As mãos ásperas do homem percorrem o caminho de lágrimas. Em seguida, seus dedos entrelaçam os fios do cabelo de Raquel em movimentos contínuos de cima até alcançar às pontas. Uma a uma. Havia um tempo sem que nada fosse dito. Apenas ruídos. O corpo é que fala as palavras. Cada fio desalinhado de cabelo, cada ternura deslizada parecia romper um quantum de sons abafados. Como rito primeiro de criação do mundo, Raquel fixa a visão em direção aos olhos do carcereiro e entoa uma canção. Um som modal, como um tufão de intensidade liberta o gemido acorrentado da feiticeira. O encantamento se sobrepôs à paisagem. Um corpo de mulher avoa livre em meio a escuridão. Não havia mais correntes nem armaduras. Apenas o coração de um homem abrigado nas asas de uma mulher.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
As correntes do desejo - parte um
As correntes contornavam pernas e braços. Uma réstia de luz perfurava o topo da parede e incidia no dorso da mão esquerda. Ali, não havia tempo. Era lua cheia ou apenas um raio de sol cruzava o escuro de uma noite que parecia eterna? Raquel sentou cambaleante e deslizou o olhar sobre o corpo até alcançar os pés. Não fazia calor nem frio. O vestido azul-turquesa aveludado compunha com os olhos um infinito céu de tristeza e ausência. Seus seios pareciam ter escapado do vestido. Sede, muita sede. A vista turva fez girar o lugar. Ela tenta levantar-se e é imediatamente impedida devido ao peso das correntes e a um outro, invisível, que se instala no vácuo das lembranças. Os músculos do corpo de um homem e de uma mulher têm o tônus fortalecido por cada fragmento da memória que permanece. Raquel perdeu os fios narrativos de uma história que precisou ser apagada. Ela se curva e aguarda a entrada do carcereiro. O rangido da porta de madeira sendo arrastada no chão de pedra confunde-se com a voz daquele que a mantém sob vigília. Ela nunca ouvira um som desde o momento em que fora recolhida ao calabouço. Raquel recosta-se na parede esburacada, coberta de limo e recebe comida e água. Em seguida, suspende os olhos com a bacia nas mãos e entorna o líquido. A sede faz escorrer, já a fome não deixa escapar nenhuma migalha. Os olhos do carcereiro seguiram o destino da água e devoraram cada parte descoberta do corpo de Raquel. Ele tinha cílios fartos, caindo por sobre olhos cansados de atravessar abismos de mãos vazias. Uma mulher sabe quando um homem permanece deserto. Ela arrastou-se, segurou cada uma das pernas do carcereiro e se recostou. Os cabelos longos de Raquel vestiram seu rosto e penderam aos pés do homem. Ele se acocorou, tomou-a entre as mãos, afastou os cabelos da mulher e passou a língua em cada gota de água que permanecia em seu queixo, por sobre o pescoço e por entre os seios. Raquel deitou seus olhos de cor amarela, imprecisos como fachos de luz em flecha veloz. O homem sentiu correntes de calor enredar braços e pernas, enlaçar pontos de cruzamento entre vigília e vontade. A chave perdeu-se do lugar-passagem. Não havia saída. Estavam presos.