sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Nau dos delirantes - epílogo


O padre fechou os punhos, cerrou os lábios e apertou as pestanas até poder nada mais presenciar. Enxergou pernas brancas e proibidas roçarem a rigidez de suas armaduras. Subiu-lhe às narinas um cheiro do mato quando a chuva bate e levanta uma espécie de mormaço verde e, sem poder disfarçar, o sangue tomou-lhe as faces. O reverendo dobrou-se junto à mulher e compôs uma curiosa visão. Os dois agachados assemelhavam-se a penitentes cientes de seus mais graves pecados.

Ao redor dos dois, como uma febre contagiosa, todos os que tiveram amores partidos, promessas adiadas, desejos guardados foram aproximando-se e posicionando-se diante do rio. As orações transmudadas em canções de amor. Uma polifonia de sentimentos de todos os tempos, de todas as cores, de todas as idades repercutiu na floresta. Eram tantos e fartos que os pássaros aquietaram-se e repetiram seus acordes. Zunindo através dos ventos, os amores daquele lugar tão pequeno, de um esquecido povo ribeirinho, deslizou rio adentro. Orelano atrelado ao leme sentiu o impacto de tantos lamentos. Seria febre, visagem da solidão da proa e do mato? E o som ecoou mais nítido e ressoou bem no meio do peito do timoneiro. O imperativo do regresso permitiu um giro fácil de retorno do barco. Os que dormiam no convés, em redes armadas lado a lado, pouco perceberam a volta.

Em linha horizontal ao cais, um cordão de gente continuava a entoar canções e arremessar a vista para o curso norte do Amazonas. Sem fome, nem sede apenas adiamentos. A noite acirrava a gelada sensação da espera. Lá no fim da linha, onde o horizonte se perde, um dos cancioneiros avistou o gaiola. Madalena continuou, como desde o início, assentada e lívida, a espera do homem amado. O barco apartou sob o alarido dos cânticos. Todos, ali dentro, dormiam. Apenas Orelano desceu em direção ao cais. Trouxe um pano fino, belo como o mistério. Avistou a amada e dirigiu-se até posicionar-se bem detrás de seus longos cabelos. Vestiu suas costas geladas com um pano de delicadeza. Era seda, ela já havia experimentado antes.

O homem derramou sobre a mulher as lágrimas da mata. E ela sequer atrevia-se a olhar para trás. Havia, agora, a vida pela frente. No mais, todos se ergueram e voltaram aos seus afazeres. A lenda conta, porém, que naquele acanhado vilarejo – noites e noites, muitos ainda acenam chamamentos de amor. A estória de Madalena é apenas um acorde que ultrapassa limites. Escute. Com ouvidos colados ao vento, qualquer um pode entoar canções. Regra excepcional: aguardar o movimento imprevisível das águas. Precaução: não temer o naufrágio. Convicção: os amantes navegam a alucinação.