quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Parte Três de uma mesma Vez


A noite deve ter sido criada com a intenção de acalmar os dias. Só pode ser! Quando abri os olhos pela manhã ela tinha sumido da minha vista. Que alívio! Seu cheiro saiu de vez das minhas mãos, ou sei lá da onde. Fiquei impregnado de um negócio que não cheguei nem a sentir. Isso me invocou mesmo! Homem imagina o que não vê. E o que nem sente, pode ele alcançar? Um amigo meu achou até de me perguntar – Falcão, quais tuas fantasias preferidas? Eu respondi – Macho, gosto mesmo é de ver e pegar, tô ligado nessas coisas não. Tenho problema de concentração, entendeu né? Agora, o diabo daquela mulher entrou e se abancou em mim feito perfume barato. O vento fez essa covardia comigo, trouxe essa fêmea pra’ mexer com o meu sossego. Naquela quinta acordei livre disso, e me animei com o churrasco no sábado e com o bingo do carneiro. Eu tenho sorte pra’ rifa, jogo de bicho, sorteio, bingo e vou tirar esse prêmio. Subi o elevador e retomei a obra. Nem vi Dona Raquel. Não dá nem 15 minutos ela entra toda suada, de short, camiseta e diz: o sol tava quente na Beira-mar. Tinha vindo como é mesmo? Do Cooper. Acredito não, má! Covardia! Olhei para tudo que é canto, menos pro lado dela. Deu não, deu não. Ela diz – Me ajuda a pregar aqui esse São Jorge? E pede para eu marcar com o lápis o lugar do prego. Minha mão e a dela ali, os dedos roçando um no outro e eu perdendo a compostura. Eu não vou controlar isso aqui não - pensei - sem ter coragem nem de mirar o volume na calça. Será que ela tá ouvindo minha respiração? (Sair correndo, de vergonha, de vontade explodindo que nem bomba poderosa de guerra). Ela entra no quarto e em seguida passa outra mulher. Pelo visto é uma massagista. Deve ser sim, ela pediu para limpar uma cama de armar, dessas de massagem mesmo. Todos da obra desceram. Levanto, deixo as ferramentas no chão da sala e vou em direção ao quarto. Uma brecha, vê-la nua. Gostosa. Melhor: chegar sem nada na mão, ela iria desconfiar. Volto, pego a marreta. Porra de marreta! Deixo de novo. Impulso. Tu é doido. Escuto o barulho da cama armando, ouço a massagista perguntar por um óleo e imagino, do lado da porta, que ela acabou de tirar a roupa. A porta, que eu mesmo ajudei a fazer é sustentada por um trilho. Ela desliza. Há uma brecha, ela não tá trancada. E agora? Se afastar um pouco, poderei vê-la. Meu coração, eu nem sei mais onde fica. Vou conseguir parar? Vou?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Os olhos de Falcão - a primeira vista (parte dois)

Não sei escrever bonito. Não mesmo. Gosto de usar as mãos como se fosse um pensamento talhado em cimento e tijolo. Tenho uma ânsia de não ficar parado desde pequeno. Medo de serviço, tenho nada!. Tô pronto para quase tudo nesse mundo de meu Deus, só não gosto de roubar e muito menos de passar a perna em ninguém. Sou homem decidido, é pegar ou largar. Burro também acho que não sou, embora o estudo tenha sido pouco. Nunca deixei de ler de um tudo: revista de carro, de cachorro também dou o maior valor; livro de banca de jornal é uma boa; revista de quadrinho japonês, acho que escreve se mangá, eu gosto pra’ caralho. A última que li falava de um tal de Naraku. Era a história de um garoto que se envolve com demônios. Ao chegar ao inferno descobre que acabou perdendo a mulher dos seus sonhos e fica nas trevas. Mulher poderosa aquela! Nunca saiu da minha cabeça. Ela aparecia toda distante, um tipo de mulher que por mais que o caba se torça todo, enfrente meio mundo não consegue nem chegar perto. Essa mulher dos diabo ficou tinindo no meu juízo muito tempo, feito disco arranhado, que volta, volta pro’ o mesmo ponto.
E aqui eu começo uma história meio sem eira nem beira. Dessas que a gente nem sabe por onde começar. O nome dela é Raquel e eu fui trabalhar de pedreiro na reforma do apartamento dela. Lugar alto, vento bom e vista bonita. Eu só trabalho com meu walkman - é que eu adoro forró. A mão no pesado e o pensamento no molejo. A primeira vez que eu vi essa Dona Raquel foi quase uma assombração. Óculos escuros, as pernas toda desenhada; riso solto de mulher esperta que bota homem de quatro e olhar meio de serpente, daqueles que mesmo com o susto, você não consegue fugir. Ela entrou na horinha em que os Aviões do Forró tocavam no meu ouvido a música Amor proibido que diz desse jeito:

Eu quero ter você comigo. Seja como for. Poder estar sempre em teus braços. Sentir seu calor. E não importa o que falem desse nosso amor. Essa paixão é proibida. Tudo o que eu quero é você. Não importa o que falem. Bem querer!

Eu imaginei logo, isso não vai dar certo. Pois não é que o vento bateu na saia da mulher na minha vista, bem no rumo do meu olho. Num minuto estavam as pernas dela desde a calçinha, tudo ali na minha frente, roçando e fazendo pouco da minha vontade. Ela ainda se segurou em mim, a criatura e eu no nada. Cambaleei na falta de vergonha e tirei o olhar de cima dela. Não sabia onde botar a mão quanto mais o pensamento. Voltei e encarei mesmo. Meus olhos voaram na direção do corpo dela e não conseguiram, tão cedo, encontrar o caminho de volta. Vontade de pegar ali mesmo. O cheiro da mulher entrou de muito, bateu lá, bem lá, como um engasgo grande com um gole d’água pouco. Pensei alto. Essa mulher é outra. Incrível como uma criatura pode ser tão diferente das outras. Tanta mulher no mundo. É mulher de todo tipo que passa na mão da gente. E uma dessas ai nunca peguei.E cantarolei na minha mente: eu quero ter você comigo. E tive muitas vezes essa noite. Eu, minhas mãos e a vontade louca de que o vento carregasse aquela Raquel (bonito esse nome!) de mão beijada pra’ ali, pra’ dentro da minha cama. Cheguei ao inferno. Sou o senhor dos ventos. O resto da história eu conto depois. Para que essa pressa?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O vento assanha o desejo (parte um)

A primeira vez em que cruzou com ele era um final de tarde. Um mar de poeira, causado pela demolição da obra sequer a permitia visualizar o semblante dos operários. Um buraco profundo como uma cratera deixava visível o efeito do tempo sob as vigas de ferro da cobertura. Uma ferrugem líquida e pegajosa substituía parte da estrutura de sustentação e havia a eminência de tudo ruir. Falcão sabia disso e leu o temor nos olhos dela mesmo sob a névoa do pó que os encobria. O tempo solta as linhas. Ela pressente. O desejo é a memória corporal de olhares que permanecem na pele. Ele não poderia ter entrado daquele jeito no quarto dela, gritando seu nome, sem que tantos pedaços de seu corpo e de seu cheiro tivessem se fixado na sua paisagem. São partes de uma história fragmentada e submersa, sem nenhum registro. Foi preciso um tempo para que Raquel pudesse trazer à superfície o olhar de F. tangenciando tijolos e cimento, sua mão afixando pregos sob a custódia do desejo, o suspender e o baixar a escada do alçapão e a insistência dela em pular por cima, sob seu olhar cuidadoso. De quantos instantes se tece o desejo? Tem alguém ai que saiba contar esses entrelaçamentos e o ápice, explosão e volúpia em desatino? Ela recorda, vagamente. Houve um momento, logo no início, que o vento levantou-lhe a saia e descortinou a visão. Raquel soltou de imediato a bolsa e segurou a ponta do vento. A saia encobriu o rosto deixando-lhe cega da nudez que se desenhava logo abaixo. A bolsa caiu de suas mãos, suas pernas tremerem e diante dele existia apenas uma mulher de calcinha branca, olhos vermelhos de poeira e de vergonha. Ele recolhe a bolsa do chão, entrega em suas mãos e diz resoluto: precisamos de vinte metros de viga! Vinte metros de viga e ela curvada sobre o vento. Será que eram seus os pés desenhados bem na janela do banheiro, quando a água já descia generosa sobre seu corpo? O momento de F. é feito de tantas argamassas, da quente manta asfáltica, dos revestimentos, das tintas, dos ladrilhos do banheiro em degrade, de suas mãos de operário em construção fundidas à obra que não lhe pertence: o corpo dela, só dela. Nele F. não podia tocar, não havia nenhuma demanda de reparo, de poder assegurar com algum artefato sua solidez, de iluminá-lo, de ladrilhá-lo. Apenas ela, a massagista, podia abrir o quarto de Raquel e percorrer seu corpo, e F, aguardou esse momento. Dele, apenas dele. E entrou.

(conto inconcluso, o próximo tópico: Os olhos de Falcão)

domingo, 18 de janeiro de 2009

Em nossas mãos

Auguste Rodin

Eu me deitei em tuas mãos. Cada dedo seu enlaça uma ponta do meu desassossego e fico. Embora a minha condição seja a de seguir o vento norte em mudanças de estação. Ele, esse vento que assobia, assopra a sola dos meus pés e ativa a saga dos andarilhos. Nem ligo para os descrentes e desprovidos de visão. Já disse, eu não sou de um lugar, desdobro-me. As minhas mãos têm asas. Atravesso os campos que me habitam e te vejo ao meu lado. Posso me esconder e inexistir na minha própria casa. Nenhum mistério ou metáfora. É que o lugar em que moro tem um alçapão. Um espaço do tamanho do meu protegido por uma escada de madeira movediça. Os meus porões adormecem aos meus pés. Daqui de cima vejo Fortaleza por todos os lados. Ela flutua diante dos meus olhos pacientes, desenhada em ilhas de indiferença e medo. Com o olhar voltado aos céus já vislumbrei incontáveis estrelas cadentes e um São Jorge todo pomposo reinando na noite de lua cheia. Sou desses cantos e de tantos outros que me atravessam. As delicadezas do homem que me habita conduzem-me para perto de mim. Ali me enxergo espalmada na Mão de Deus, nessa ambivalência de ir e ficar. Permaneço em cada lugar em que me abrigas e me deixas livre. Foi exatamente isso que Rodin tentou plasmar em sua obra: a mão concreta, física do escultor e o ato divino da criação. Fundidos e materializados. Podemos estar em todos os lugares. Permaneceremos. O momento seguinte vai ser sempre a vontade do beijo e do teu corpo sobre o meu corpo. Mesmo que o vento me faça cócegas, você me tomará nos braços e dirá: se aquieta mulher! E eu viajarei nas tuas mãos.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

perdoando as palavras


Eu ando desconfiada das palavras. Acho que elas me usam. Atropelam-me sem que muitas vezes eu sequer tenha ousado atravessar o curso do desejo. Quanto mais te quero, tergiverso, sem rima, nem misericórdia. Sento ao teu lado, teus olhos buscando os meus na nossa compactuada escuridão, o calor das tuas mãos em minha direção e uma frase despenca: seremos bons amigos né? Elas saltam da minha boca e se lançam impiedosas na sua (nossa) direção. De onde elas surgiram, minhanossasenhora? Você me olha, o homem das palavras poucas, e as toma em suas rédeas. Elas, as suas palavras-cancela permanecem com você. Tento alcançar algumas letras que possam flutuar em minha direção e te encontro silenciado. Você artesão de ditos feito gesto, feito corpo. Eu tão sentimental, de coração saliente. Estamos enlaçados na Linha da Serra. Eu estou apaixonada por você – eu consegui, eu consegui dizer! Como pedra rolando no despenhadeiro, outra frase dispara em seguida: mas, eu tô com vontade é de sair correndo até Canindé...! Repentinamente, tuas mãos caminham até minha boca e vedam a passagem. Teus dedos sustentam a minha confissão em estado bruto: eu estou apaixonada por você. Em seguida, você recolhe a palavra fugitiva e a adverte; “não adianta, vou correndo até aonde você chegar”. Agora, sou eu capaz de seguir em disparada no rumo dessas palavras, recolhendo-as do lugar da minha inexatidão, dos desvarios da eterna menina desastrada. Eu sou perceptiva. As palavras que teclo, agora me olham de soslaio, desconfiadas de mim. Faremos as pazes, no preciso instante em que eu as use para te dizer de mim, de você, para mais nada dizer.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Amigas


Ela nasce junto comigo. No escuro, tambores produzem um som simulando os movimentos da respiração. A voz forte e quente de Milton Nascimento ressoa rasgando o ano de 1987 - “tudo que move é sagrado”. Fecho os olhos e percebo a presença dela, o lúmen de sua vida ali anunciada feito música, feito sinfonia de seres encantados. Nove meses depois, chega Isadora. Após uma leitura intensiva da biografia de Isadora Duncan, marcada recorrentemente pela indagação – por que nunca dancei? Ela vem ao mundo ensaiando seus próprios movimentos, embalada por passos tão marcadamente dela, em coreografias de vida que se arriscam para além da ponta dos pés. Eu vi, logo. Quando chora o nascimento, abro os olhos e sou apresentada aquela criaturinha apinhada de brotoejas, faminta e cheia de orgulho por ser dona do dedo que a consolava cada vez que o levava à boca. Desconcertava-me diante de sua presença. Seu choro eram torrentes de dor, anúncios de fome em alto volume, sirenes da vontade imperiosa de ser acalentada. Onde ficaram todos os meus desejos sem-vergonha, distantes da racionalidade prevista? Eu desisti antes de tanto coisa. Isadora, nunca! Que acontece com essa meninha que apenas come quando tem vontade, que passa quase o dia todo dispondo do meu leite, que aponta muito cedo o dedo para o mundo ao seu redor e repete, até a exaustão: eu quero, eu quero, eu quero! Cada chupeta que eu tentava substituir pelo dedo, ela expulsava da boca com uma cara banhada de indignação. Então, criei estratégias. Molhava de leite a ponta da chupeta, de mel e ela sofisticava também suas expressões de rejeição. Eu me perdia diante das minhas escolhas apartadas dos indícios de vontade. Não sabia o que havia feito de mim quando ela anunciou o seu pavor de fantasmas. Eles retornaram e povoaram nossa fragilidade de meninas. Minha mão agarrada a dela dizia da certeza do mistério e da presença daquilo que a gente nunca consegue ver e nos espreita. Esses fantasmas entraram em nossas vidas por um tempo que não se conta. Abancaram-se entre nós. Cada uma encontrou formas de driblar o temor da escuridão. Você dizendo-se sozinha e eu acreditando no tanto de gente que me rodeava. Eu me fazendo sozinha e você teia de afetos em profusão. Hoje, você está aqui ao meu lado. Enquanto escrevo você assiste na cama um filme sobre Jim Morrinson. Na sua escrivaninha, há um porta-retrato com a foto de duas mulheres encantadas uma com a outra, de riso sorrateiro e uma expressão de quem ama muito e se sabe amada. Logo acima, uma palavra aparece redundante: amigas. Eu nasci junto com ela. Eu vi, logo. Nós, não desistimos né Isadora?

domingo, 4 de janeiro de 2009

A delicadeza



Fileira de corpos contra a multidão
O medo
Tua mão na minha mão

Pés no chão nem tanto fincados
Um toque
Meus braços em tua direção.

Fogos pintando o mar
O calor
Teus dedos em meus cabelos

O beijo do Aterro
Líquido
Irrompe janeiro.

Em tuas asas
Coladas ao meu corpo
Prenúncios de explosão

O sol recolhe as intenções
Fica nítido
O medo na tua mão
O medo na minha mão
É primeiro, o dia.


(Para o homem que enxerga)

Fortaleza, do ano da graça de 2009
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