domingo, 30 de agosto de 2009

Dormindo com o desconhecido

Toulouse Lautrec

Acordou aos pulos. Era escuro breu. Sentiu um formigamento na ponta dos pés. Um frenesi de não poder parar braços e pernas. Tinha pressentimentos de fertilidades. Abriu os olhos e se perguntou em que diabo de lugar estava metida. Um silêncio zunia o vazio da escuta. Nunca se sabe do que vem depois de quando o nada se instaura. Raquel estava adiada de experimentar o ponto escuro do prazer. Nessa noite, fora tomada de assalto. Uma mão quente abria uma fenda e pedia passagem. Um silêncio de homem feito fera, movido da vontade dispersada de palavras, se apoderou do corpo dela. Sem se apresentar, sem pedir a chave, ele burlou segredos. Encontrou-a no canto esquerdo da cama. Raquel quase sempre se manteve a beira, no limiar entre um dentro e um fora. No parapeito do tanque com cheiro de barro e vislumbres de rã, na ante-sala das maldades infantis, na reserva do time de handball. Era a borda, seu lugar de ficar, o canto de conter precipitações. É certo que, quase sempre, era alvo de comentários. Ler muito provoca lentidões. Ela gosta de botar o corpo fora. Será que sente o suficiente? Sua velocidade cerzia um jeito de se retirar. Nessa noite, uma ligeireza cobriu o rosto dela. O visitante levou as mãos até a altura de suas fechaduras. Movendo um jeito de ter prazer. Ela sentou-se e, subitamente, sentiu-se empurrada de volta. A tela escura permitia ver a nitidez das dobras. Dos músculos pendendo braços e pernas. Da boca derramada em saliva e palavras sem nexo. Em dueto. Do roçar da barba mal-feita, fazendo arrepiar cada palmo da pele dela. Um grito pode esperar calado um incalculável tempo para ser rompido. Soou a sirene dos que se derramam. Finalmente, Raquel reconheceu o lugar onde havia dormido. No centro da paisagem do desconhecido. O homem.

sábado, 22 de agosto de 2009

Eu abro a porta: um pedido mútuo de perdão



por que cresceste curuminha, assim depressa, estabanada, saíste maquiada dentro do meu vestido”
Chico Buarque

Ela soltou a mão. O vidro do carro subiu diante da cara espantada da menina. Fechada na solidão. O castigo por falar muito, por esconder-se para brincar, por deixar comida no prato. Ficar trancada no carro. Interromper o lugar de passar pode ser a forma mais rápida de se matar a coragem. Uma criança desconhece cancelas. Leva um tempo para que o abandono se torne nítido e mudo. Ela, de início, ficou aquietada. Na sua imaginação dos jogos de esconde-esconde, Maria acreditou que a mãe logo, logo voltaria. A feira engoliu a imagem da mãe em meio às barracas e ao vai-e-vem dos passantes. Lá fora, gente, muita gente. Os vidros fechados produziam a imagem de um filme mudo. Invertido. Dentro do carro havia apenas calor, o medo e um vácuo de palavras. A ausência faz barulho. Um nada se instaurou como fogo na alta temperatura do lugar fechado. Repentinamente, uma explosão devastadora de terror, sem lugar, sem nome tomou conta do corpo inteiro da menina. Não havia em volta dela qualquer coisa familiar, nem um movimento possível capaz de reter o desespero. Havia a possibilidade de um choro alardeado chegar aos olhos e ouvidos da mãe? Havia? Não. Esmurrar os vidros. Muito. Olhos de todas as espécies acercaram-se do carro. Uma multidão de desconhecidos fez ressoar para fora o choro mudo de Maria. Faltava ar, faltava fôlego. Uma mulher de cabelos longos e mãos de bondade, que nem as santas do colégio de freiras, roga calma. De fora do vidro, através de gestos, diz que um corpo pode sobreviver, mesmo que morra sozinho. Mesmo que uma criança tenha que entender, antecipadamente, a dor dos fios rompidos. Diante da incrédula multidão, surge a mãe de Maria. Tão cerceada e muda quanto a menina. Com uma diferença, parecia que ninguém se dava conta de seu fechamento, de ter sido castigada em silêncio. Todos os dias. Em volta do corpo da mãe, vidros suspensos parecem ter vedado seus transbordamentos, seu viço. É preciso um gesto que faça abrir as portas. Ela adentra o carro, senta e permanece muda. Até que a menina deite a cabeça em seu colo, banhada de suor e lágrimas. Até que a dor das duas seja uma. Até que a vida de cada uma siga outras rotas. "Se fosse permitido, eu reverteria o tempo". Abriria todas as janelas, que dão para dentro e para fora. E me permito, e te permito abrir entre nós essa porta de perdão. Amém.

domingo, 2 de agosto de 2009

A imensidão na torre




A paisagem desafia os limites da visão. Uma luz intensa, quase invasiva, derrama-se sob o traçado xadrez de uma fortaleza dos ventos. A mulher se encontra elevada, podendo ver mar e dunas, mangues banhados pelo fluxo e refluxo das marés, verdes confinados entre paredes e vias. O reinado da visibilidade. Sua torre ocupa o topo mais alto do planalto e alcança os quatro pontos cardiais da cidade que vagueia cega. Cada final de tarde, um sabiá, de canto melódico, pousa na torre e enuncia o tempo das asas e do vôo. Ela repete impulsivamente o mesmo movimento – toca o pescoço e tenta afrouxar o que restou das correntes. O lugar, por vezes, ainda é escuro e pesa. Lá fora, a claridade rasga o céu das manhãs. Uma existência trafega sob superfícies, entre abismos e pontes. Ao traspassar túneis, cavernas e lugares confinados Raquel vislumbra o que permanece. O tilintar do aço sendo afiado, o zumbido do frio e da fome e a chave do carcereiro entreabrindo passagens. Poderia ser de outra forma? O corpo guarda e preserva o raro, o sagrado. Mesmo perfurado, amarrado, forçado, amordaçado existe dentro dele um cômodo secreto que abriga o perdão, doses de ungüento e porções de encantamento. O deslizar da língua de Raul, o percorrer suave das gotas de água por entre os seios, sua desmedida ternura provocam na mulher um lastro de dor e paixão. A memória dá vida. O prazer guardado, retido abre passagem e afrouxa as correntes. Ela desperta. Abre a porta. É ele, o mouro temido, o guerreiro incansável e rude, de lábios grossos, mãos ásperas e certeiras que a conduz para além da escuridão. Uma mulher pode temer e esconder por toda uma vida suas agitações, estremecimentos e precipícios. Uma mulher pode se esconder. Daqui de cima Raúl aponta a direção dos ventos. Pequenos vestígios de asas crescem em meio a cicatrizes e marcas de correntes e cordas. Ela enxerga e move-se sob o lastro de luz. É dia. A moira entoa o canto livre do sabiá.