sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O vôo


(A poltrona de número vinte e cinco
Era exatamente aquela
Da saída de emergência
E eu a guardiã dessa passagem)

Logo eu que temo cotidianamente a minha própria insegurança.
E nem pressa tenho mais.
Como ser aquela
Que na hora H
Puxa a manivela?

Logo eu que troco as saídas
Pelas portas de entrada
Os banheiros femininos por masculinos
Os amores continentes
Por amores lançados ao vento?

Logo eu que na eminência de uma tragédia
Serei a primeira a duvidar da possibilidade
De abertura.
E produzirei travas e trincos
Adornados pelo medo da espera?

Logo eu que quando pressinto o perigo
Imagino o morrer
Uma aventura da passagem
Para além das portas
E dos avisos luminosos de apertar cintos?

Logo eu que navego
Em pleno ar
E decidi transpor os abismos invisíveis
Remover os anteparos da visão
Romper os lacres dos tesouros adiados
Logo eu?

Como posso dar segurança?

domingo, 26 de outubro de 2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008



Encontros Proscritos Três ( Escritos nas Alturas Três)

Tudo inchou, inflou. Não consigo digerir. São 4 horas da manhã. Falta sono, fica apenas um cansaço desassossegado. Faz calor no frio, não encontro lugar na cama. Amo um amor que parece não ter para onde ir. Talvez tenha se extinguido há muito tempo, talvez nem tenha existido. Olho e sei que tudo nele é sinal de uma história de amor; os olhos pequenos e repuxados, os lábios vermelhos, o nariz empinado e o meu encanto pregado na cara dele. “Posso escrever as linhas mais tristes esta noite”. Os cachorros latem ao longe e mesmo ao meu lado, ele não está comigo. Nunca vi tantas estrelas cintilando no céu da Linha e nós dois imersos na escuridão. Quando foi embora? Quando me ausentei? Deixamos o desencontro ocupar a sala de visitas. Eu ainda me lembro de nós dois enlaçados e nítidos. Preciso de um guia de cego. Nem consigo andar de bicicleta! , perdi o equilíbrio. Talvez, chore muito. Minha mãe dizia que chorar era fácil para mim. Mariposas tantas, tantas bem pequenas e doidas por luz. Descobriram agora que podem voar. A chuva irrigou essa nascença. Eu quero fazer do meu choro surgir seres voantes enunciando a boa nova. Ele dorme ao meu lado. De mãos em concha e eu aqui tão a ermo. Quando amanhecer, não terei dormido. Como disse no início, tudo na minha barriga parece ter parado no exato momento em que comi e vi uma tristeza se fazer enchente. Cadê um colo? Um consolo? Uma canção de ninar? Tem alguém ai para me guardar enquanto dói?
Março de 2007

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Desalinhos e desmesuras (parte dois)

I just call to say I love me

Pela fresta vejo o tempo escorrido
corpo adentro.
Nem chuva, nem sol, muito menos alerta de fogo,
Pareciam tocar sua superfície silenciosa
e sonsa.
Ela se fingia de morta para melhor viver
Dizia minha avó da mulher da frente
Cada vez que o mundo pedia dela um grito, um riso, um gozo.
Ficava quieta e no canto da boca desenhava um gracejo de cumplicidade consigo mesma. Apenas ela alcançava. Eu que vivia para fora, vida vai, vida vem, ficava a imaginar para onde iam seus transbordamentos.
Passei a vida acordada e agora, percebo o quanto aquietei um tempo sem ao menos saber. Dormi para ver por dentro e fiquei aconchegada na passividade cúmplice. Uma incubadora de desejos, adiados e imprecisos.
Em que lugar me guardei enquanto dormia? Nem acordar eu sei. Remexo os sonhos e me vejo deitada na rede com o desconhecido. Um homem carregando a lenha passa e rouba meu olhar, um negro toca a ponta dos meus dedos e estremeço.
Subo e desço as ladeiras da serra. As papoulas sempre foram tão vermelhas? Montanhas de formas diversas enchem o vale de volúpia. Canindé tem um santo e eu aqui vendo malícia por todos os lados. Que cara tenho eu? Tomo a digital e registro imagens tantas de mim. No canto da boca o riso da vizinha. Nítida uma cara de mulher, desalinhada e vermelha, de vergonha é que não é.







Desalinhos e desmesuras (parte dois)

I just call to say I love me

Pela fresta vejo o tempo escorrido
corpo adentro.
Nem chuva, nem sol, muito menos alerta de fogo,
Pareciam tocar sua superfície silenciosa
e sonsa.
Ela se fingia de morta para melhor viver
Dizia minha avó da mulher da frente
Cada vez que o mundo pedia dela um grito, um riso, um gozo.
Ficava quieta e no canto da boca desenhava um gracejo de cumplicidade consigo mesma. Apenas ela alcançava. Eu que vivia para fora, vida vai, vida vem, ficava a imaginar para onde iam seus transbordamentos.
Passei a vida acordada e agora, percebo o quanto aquietei um tempo sem ao menos saber. Dormi para ver por dentro e fiquei aconchegada na passividade cúmplice. Uma incubadora de desejos, adiados e imprecisos.
Em que lugar me guardei enquanto dormia? Nem acordar eu sei. Remexo os sonhos e me vejo deitada na rede com o desconhecido. Um homem carregando a lenha passa e rouba meu olhar, um negro toca a ponta dos meus dedos e estremeço.
Subo e desço as ladeiras da serra. As papoulas sempre foram tão vermelhas? Montanhas de formas diversas enchem o vale de volúpia. Canindé tem um santo e eu aqui vendo malícia por todos os lados. Que cara tenho eu? Tomo a digital e registro imagens tantas de mim. No canto da boca o riso da vizinha. Nítida uma cara de mulher, desalinhada e vermelha, de vergonha é que não é.

sábado, 18 de outubro de 2008


A glória e a linha (escrito nas alturas um)

Tem alguém ai para um dueto
A quatro mãos
Capaz de vibrar canção no vendaval
Da Linha da Serra?

Quero colher manjericão
Acompanhar a grama se esparramando
No quintal
Olhar Caridade ao longe
Jardim do outro lado
Entrar no quarto
E triturar densidades.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Os quatro elementos ou porque é preciso ir

Era um poço tão profundo que tocava a pele do mundo. Ali, onde tudo era aparentemente plano, superfície intacta, havia furos, rugosidades, entradas e saídas. Um profundo feito de horizontalidades e abismos. Assim como Deus costuma tecer seus mistérios.
Era um poço corrente, com cordilheiras de musgos e vitórias-régias, a entrever o rasgo da luz que saudava a eterna brincadeira de entrar e sair, de mergulhar e boiar, de ser navio, submarino e albatroz."Fica ai que ele te leva correnteza abaixo e te salva", diziam as mulheres aos seus filhos mergulhadores. Era então, que num gesto quase sagrado, eles ouviam e voltavam para salvá-las da terra. Eles sabiam que as mães deveriam ser postas em perigo para terem coragem de ir.Entretanto, o poço não era somente um lugar cujos chamados eram motivos de preocupação para mães e avós. Virar planta pode significar uma forma de não se deixar levar, de desistir de ouvir o chamado dos ventos e das águas andantes. Lá havia também o fogo mais abrasante capaz de aquecer léguas de distância. Água e fogo sem nenhuma utilidade. Assim como o vento que dava movimento a tudo e a terra que o contornava quieta e macia. Nada de preocupação com higiene, limpeza ou fogueira de restos. O poço fazia correr os desejos mais improváveis, impuros e com uma faísca tornava toda a água um poderoso combustível. São belas as coisas sujas, despropositais e perigosas.

Até os viajantes sabiam que o lugar para se experimentar o único, o mistério do sentimento que parecia deixar bravo até mesmo Deus, ficava bem ali, no poço dos quatro elementos. Como não podia ser diferente, os velhos da aldeia contavam diversas lendas sobre ele.

Uma dessas histórias fala sobre um anjo-feiticeiro que havia ganhado asas depois de se apaixonar por uma feiticeira-anjo de olhos grandes e pele quente, cor de amêndoa. A devoção do anjo à feiticeira, e da feiticeira ao anjo, não somente tornou-o humano e com asas, mas deixou também, o humano Deus, conciliado com a sua criação. E no oitavo dia Eros desfez poço e banhou o mundo.Em regozijo, o Senhor tornou o amor dos dois água-terra-fogo e ar, e dispensou o escrevinhador das artes de Memória. Numa “bendição”, por um tempo, tornou atemporal e sagrado aquele amor. De tão bondoso, o Senhor decidiu, por repetidas vezes, soprar os ventos perto das asas do anjo-feirticeiro a fim de devolvê-lo ao seu caminho. Deixou as águas deslizarem para que ele pudesse escorrer. Usou o fogo para atiçar o desejo e lançá-lo em fresta à sua amada. Trouxe, por fim a terra, para que ele aportasse no seu lugar. Nada disso parece ter acordado o anjo-feiticeiro. Por não se sentir merecedor o anjo inventou um Deus bravo, castigador e um amor finito. É por isso, que ele, esse anjo, não consegue sumir, e se encontra perdido entre o seu mundo e outro estranho para ele, mundos fora dele.Ao encarar a promessa de uma nova terra, de um outro amor o anjo foi deixando-se cair; a sensação do vácuo em terras distantes o remetia, de forma insistente, a olhar de longe o seu amor perdido. Apesar de ainda ter asas e possuir corpo de homem-anjo, ele já quase não conserva seu coração-quatro elementos. De tanto querer negar, ir, recusar ficar e aportar o anjo foi perdendo aquilo que tinha de mais sagrado: o amor- cordilheira, o amor-ventania; o amor-combustão, a amor-chão. Ficou apenas um corpo-representação. Porém, há o outro lado da história. Dizem que a feiticeira-anjo percebeu a incessante vontade e generosidade de Deus em criar e re-criar o amor. Por ter esperado o anjo-feiticeiro criar asas, tornar-se homem, abrir mão do seu coração e, em seguida, tê-lo perdido, Deus trouxe para ela um homem que voa e fica. Um homem que ama e ama. Um homem que se sente com asas apenas por ser amado e poder estar ao lado dela. Um homem e uma mulher, ambos alados e enfeitiçados. O anjo-feiticeiro? Virou conto.

O mar leva e traz


O mar leva e traz (encontros proscritos dois)


Entrei. Vi um homem ferido sem que eu pudesse evitar. Como deixei que a velocidade, o desatino de quem anda ao sabor dos ventos e das marés pudesse fazer capotar o seu destino? Braço enfaixado, olhar curioso e a sensação de perplexidade por estar em um lugar cujo tempo parece ser livre. Um braço que me pôs diante de uma desatenção, de um cuidado desastrado com a alma que anima esse corpo. O que foi isso? - Perguntei- Pressenti que ele nunca mesmo iria conseguir explicar porque virou, porque ficou.

Vi sua grandeza de corpo mesmo que se expande talhado, como monumento. Jeito de fincar pernas e braços que tudo alcançam. Eu sei, ele ataca, muitas vezes devora. Instinto tubarão que antevê as presas que rodeiam e instigam. Repentinamente, baixando a guarda ele senta no chão, horas a fio.

Do outro lado da sala, em momentos de lusco-fusco, via e não via o homem que parecia surgir da minha escuridão. Mesmo quando percebia que seu olhar fugia do meu, sentia-me vista, atravessada de desejo. Cada gesto, cada movimento do meu corpo, parecia refletido na sombra do homem que espelhava à minha frente. De que onda de tempo ele veio ao meu encontro?

Foi assim que vi entrar na minha sala de mulher esperta um homem que não costuma pedir licença. Fui desavisada encontrá-lo. Pensei: homem avesso do esperado, mete menos medo. Cheguei até ele despretensiosamente e, como muitas vezes solto coisas de menina malcriada, aproveitei: não vim para ficar, vim para ver.

Diante do meu olhar, pressenti uma ternura boiando a ermo. Não há bússola capaz de prever a direção das coisas belas e profundas. Quando a sua mão me tocou percebi o prenuncio dos fenômenos que alteram a paisagem, tipo correnteza, redemoinho e precipitações.

É então que o braço começa a cicatrizar e cada ponto retirado enuncia: o meu homem prepara-se para ir. Meu escravo sem dono parte antes de aportar. Você que é de-lugar-nenhum vai e deixa livre o meu jeito escondido de ser mulher. Deixa-me. Esse é o legado do nosso encontro. De outro modo, sei que em você reside uma força que me coloca no lugar, que me nomeia – fêmea.

Obrigada por teres adentrando minha alma sem pedir licença. Que os deuses e deuses te acompanhem Mar Adentro, Terra Afora.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Tanto Faz






Eu bem aqui
Você longe, longe.
Um no topo da montanha
O outro em alto mar.
Você correndo lento
Eu retendo solta.
Um vendaval
Outro apartamento.
Um latido
Outro lamento.
Um vulcão
Outro tormento.

Tanto faz,
mesmo

Pontos invisíveis
Entrelaçam pernas e braços
Línguas e dedos
Gemidos e risos
No lugar inexistente
Da gente.
Eu deitada nos seus braços
Estórias narradas ao vento.
Você escorrendo em silêncio
Eu tateando teu tempo.
Você bem aqui,
Eu longe, longe

Tanto faz
O mesmo
Bem.

Adormecemos os dois
Amanheceremos

15 de outubro de 2008

terça-feira, 14 de outubro de 2008


Estação do dia


Queria-te
Como quem busca o sol
atravessei
nua.
Imaginei
Tonta de luz
O fim dos invernos.
Navegando tantas luas.
Eu sou do tipo
Que vai e que fica, indo.
Toda e nem toda.
Até que o balanço
Pare.
Sou uma mulher sentada
Ao sabor dos ventos.
Quando quero,
Finco os pés no chão.
Medo?
Por que não?
Do medo se começa
Para que ele se derreta.
O sol derrete o medo, sabia?
Desde menina sei.
Assim, como no centro.
Da minha cama apinhada de fantasmas.
Durmo e vou sonhar.
Fecho os olhos
E fico
E ficoficando.
É que tem gente que fica(só)indo.
O sol derrete o medo sabia?
Chá de cidreira também.
Avó cura insônia.
Assim tão bestamente tua
Lembro
A primavera.
Vi flor em tanto canto
Que nem conto cores e pétalas
Psiu! Está ficando tarde.
Sonata de Outono?
Nem sei, deixa passar,
Outra lua.
Ali, ainda tão tua,
E nem tanto.
Agora ainda mais nua.
Ainda penso,
Pode ter sido quebranto
Olho gordo.
Faltou simpatia?
Preciso ir,
Com licença,
O sol derrama.
Por favor,
Uma informação:
Qual a estação do dia?

sábado, 11 de outubro de 2008

Um dueto, ou uma carta de amor



Agora é quase meia-noite. Sob os meus pés, tenho as patas de Bilbo e uma vontade de carinho que nunca cessa. Vejo-te nos olhos dele. Nos olhos dele? Sei da imensidão que me circunda, o que temo transborda. Fico confortável quando avisto o limite de cada coisa, quando meço a palmo a distância de onde estou e o que me falta. No geral, antevejo e me apaziguo. Quando estivemos entrelaçados, desde o primeiro momento, não avistei o fim. Como um barquinho pequeno num mar infinito e eu navegante sem bússola.

Que menina esquisita! Quanto tempo faz que ela lança o olhar para não se sabe o que? Glória Maria, o que você faz ai, o que você está vendo? Desde bem pequena nunca entendi porque via sempre outras coisas que pareciam não compor a paisagem. Um dia perguntei: Como se faz para sair da gente e voltar? Foi quase sempre difícil me habitar sem trégua. Era banhada por uma desmesurada sensação de que cada coisa vista me falava, me convocava e eu tonta, gaguejava e me esquivava. Haveria delicadeza capaz de me sentir tomada pela mão em silêncio? Haveria?

Por isso sei meu amor como é preciso que os dedos deslizem pacientes por nossas superfícies tão protegidas, por nossos "quartos de angústia", por detrás das portas e dos pequenos recantos de estranheza e encantamento mútuo. A transparência que nos envolve é como um facho de luz de vaga-lume; existe apenas para quem também assume essa mesma condição. Já viu dois vaga-lumes no mesmo espaço escuro? A minha Glória é apenas ter experimentado e habitado o vácuo e reconhecer quando uma matéria viva o visita e resplandece.

Você fica na condição de quem sempre esteve lá, sabe de cada recanto meu, dos meus desvanecimentos, de onde falta a linguagem e de como ela vem em torrentes de tudo explicar, de tudo ocupar. Você sabe e eu não tenho mais onde me esconder. Sabe que a "menina dos talcos" permanece trêmula e lívida. Você sabe, eu deixo e me entrego! "És tú quem sempre esteve dentro de mim, sou eu quem estive acolá".

Ao dono deste gato, aqui comigo.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008


Criolina e Buiú: encontros proscritos (um)

Retomo a cena inaugural: um vento desloca as vestes que supostamente recobrem os corpos. A câmera foca o vestido envelope da mulher aberto ao vento, adentra o carro e sem esboçar nenhum movimento capta a nudez recoberta do homem.

(Buiú, um delirante morador de rua, fez do corpo um guarda-roupa. Dobraduras de vestes de todos os tipos empilham-se. Não se sabe quantas calças, camisas e bugigangas tranca sobre si. Carrega tudo o que possui ao mesmo tempo e acredita, desse modo, protegê-las, conservá-las. Ninguém até hoje sabe dizer quem esconde o que, se as roupas cobrem o corpo ou se o próprio corpo envolve os pertences. Um dia me falou do seu cansaço, do seu frio-vestido, de um peso que carrega dia após dia, movido pela idéia de tornar o corpo cofre de tudo que possui. Sabia Glória que isso pesa? “Melhor ser vagabundo, que nem tem nada, que num tá nem vendo” me dizia o homem guarda-roupa. E assim, banho era aqui, acolá, poder se ver era quase nunca e ficava nessas dobraduras de panos protegidos, ausente de si.)

(Ela era chamada Criolina, andava cheia de latas e nesse baticum anunciava de longe sua presença. Quando o alarido soava alto, amontoava-se em torno dela um punhado de olhares. Era então chegada a hora: ela levantava a saia e se mostrava como veio ao mundo. A rua ficava em rebuliço: que pouca vergonha! Tudo que se dava a ela como calçados, vestidos, calçinhas e até absorventes era lançado ao chão, propositalmente. O sangue escorria por todos os cantos, mês a mês. Ficava o vermelho desenhado nos lugares onde dormia. Ria muito, cantava alto e dançava rodopiando em música. Por vezes, era tomada de um choro-rasgo, em golfadas de sentimentos de volume alto, falados em dialeto mesclado de bicho e gente. Nua e demente. Criolina seguia, inundada de si.)

Em um dia especialmente nítido, encontraram-se. Criolina logo que olhou o homem guarda-roupa, pode ver para além das dobras, cascas, folhas, tecidos de todos os matizes e texturas que o envolvem. O seu olhar o alcançou “antes de (dele) se especular”, e de vestir-se em vigília. Na condição de nua, esparramada e intensa, ela tomou a mão dele e percebeu seu desassossego, o seu temor de, mais uma vez, confirmar a ausência daquilo “que se travou feito pedra”. E seus olhos derramaram mel e ternura. Se já havia perdido tudo, por ter sabido desde sempre que sua condição é de nudez, de nada reter, de se esvair mundo afora Criolina poderia sim tomar a mão do homem. Poderia também, ao seu lado, fazer ressoar o alarido das latas e vestir-se de suas costumeiras vestes: a nudez.

Assim o fez. E ficaram os dois, sentados e circundados por um vácuo que se impõe feito trava e inusitadamente feito verbo que se apossa. Um vácuo cheinho de pulsação revestido de uma matéria de “silêncio que fala por tudo que não consegue dizer e entender”. Ela, por sua vez, “serelepe e vasta”, desajeitada e esparramada, pressente sua suposta ausência. “Talvez nada desperte” ou talvez seja essa a forma sua de despertar e de se desnudar. E segue, junto a ele. Criolina, movida de doçura cheia de vida vivida, o recebeu e disse: vamos parar tudo. Tudo, tudo, tudo e deixar o vento nos guiar.

Encontramo-nos: você tão absurdamente nu e guardado e eu tão escancaradamente nua e perplexa. Encontramo-nos e não interessa o que nos aguarda e o que faremos desse prelúdio. De quantos silêncios atravessarão nossa polifonia solitária, lírica e, por vezes, atravessada por ecos do nada. Puta que pariu dez vezes! Isso é fértil, me faz sentar e escrever em pé, banhada por eros, que tudo inunda e conduz.

Fim do encanto. De volta ao quebranto. Ela o surpreende no peso, assolado por uma aguda sensação de vacuidade, perplexidade, e antevê os seus olhos desorbitados. A mulher, finalmente o enxerga inteiramente nu e alcança o que só uma criatura como ela e outros seres raros saberão. Um dito desnudado, uma fala que transita crua e límpida, um afeto teso e tenso, uma amizade povoada de tantas coisas mais.

Criolina e o homem guarda roupa se viram e se sabem, o resto da história apenas os loucos, que nem eles, serão capazes de antever. Podem nunca mais se tocar, podem seguir bêbados, solitários e nus, vida afora. Mas, tem algo que o tempo não apaga e nem ela deixaria. Então, ela retoma a palavra que transborda.

Olhar para essas pedras como parte de você meu amor tomá-las uma a uma e ora brincar de cinco pedrinhas, ora jogá-las para longe e, quando preciso for compor um silêncio: eu, você, as travas, trancas, pedras, com encanto e/ou quebranto. Não importa eu sendo eu, solto teu cabelo e te dou a mão. Infinitos, como novelos esticados, tesos, finos, brancos e cheios de graça.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

o corpo num dia santo


Perdição

Para onde anda o amor?
Que amor?
Ele não sabe.

O sentimento de grande se inaugura no centro
Do mesmo modo que o mar é o céu pregado na terra
Que se derrama
E permite cerzir sal e tempo
o amor é uma imensidão ungida no corpo
que se esvai,
E fica.
.
Quantos corpos cada um tem?
Quantas vidas?
Ela não sabe.

Um desassossego se desloca sem lugar
Do mesmo modo que a terra é o mar inundado de areia
Que se enterra
E permite a ilusão de abortar o tempo
O amor é uma invenção do corpo
Que se retrai,
E fica.

Ei, por favor!
Você poderia me dizer
Que dia é hoje?

Semana ( nem tão) santa de 2008.

imagem:
O segredo dos segredos
Da série "amor e desejos"
Rose Canazarro

terça-feira, 7 de outubro de 2008


Eu vi meu anjo na contramão

sem asas para voar

então providenciei o primeiro raio da aurora

tornei o medo matéria-prima

as asas se expandiram

ascendi

Foi que voltei para buscar o anjo

Voltei para me buscar.

sábado, 4 de outubro de 2008

Para não dizer que perdi as cores



Eu fui buscar aquarela de volta


Há beleza no encontro fortuito
Nem um nem outro
Nada buscam
Sem meios-termos
Sem lados,
E caminhos.
Nem um nem outro


Que bonito são duas asas em vôo
Que apenas pretendem ir longe
E se descobrem em dueto no despenhadeiro
Nem um nem outro
Ainda que voem no mesmo plano
E se descubram no infinito

Que leveza são as cores dela
Derramando-se no branco do coração calado dele
Nem um nem outro
Mesmo quando faltam
O negror dos tempos cala suas asas
Elas habitam o pincel e a pallheta
E a paisagem se esconde sobre névoas.


Eis tu, minha aquarela branca! Tu que foste o mais belo,
Escondeu minha caixinha de lápis de cores,
Procurei no céu, na lua, nos lados, na luz e na escuridão
Desbotada e prenhe de um colorido perdido

Foi que olhei para a ponta dos dedos
E fui derramando azul, tão verdinho, aveludado de roxo, de um amarelo tenso....
E trouxe de volta a asas
De um e de outro
De todas as cores

Direito de Resposta a Duas Maneiras.