segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O primo, o jardim e a espinhela caída



(Uma homenagem a Eça de Queiroz)



Raquel indagou - O que é um desassossego subindo pelas pernas, apertando o estômago e desenfreando o coração? A madrinha-avó de pronto respondeu – menina é espinhela caída. Faltava apenas cinco dias para o aniversário de treze anos e apenas dois para a chegada do primo que vinha do Rio de Janeiro. Raquel calculava cada minuto do tempo. Havia passado três meses, dois dias, 16 horas e alguns minutos do momento em que esse negócio sem nome deu seu primeiro sinal. Depois de algum tempo é que se descobre que as coisas grandes começam sem pretensão.

Foi nas férias de julho, lá na Ilha do Governador, que o furo de um pequeno graveto instaurou a primeira cena. Já vivia chateada com as constantes provocações dos parentes do sul, pois diante de qualquer visão da beleza do Rio, o Cristo Redentor, a Atlântica, um prédio de muitos andares os primos em sintonia cantarolavam Luíz Gonzaga:

“Tenho visto tanta coisa
Nesse mundo de meu Deus
Coisas que prum cearense
Não existe explicação...
No Ceará, não tem disso não, não tem disso não”

Era considerada a prima matuta diante da cidade maravilhosa. Porém, o lugar que permanecerá indelével na memória da viajante é o jardim e o seu segredo. Recorda até do vestidinho de algodão puro, desenhado de florzinhas coloridas, acinturado, meio decotado e com um laço do mesmo tecido amarrando o pescoço. Nessa altura do acontecimento os tios, devido aos banhos diários na praia de Copacabana, já se referiam à sobrinha vinda de fora com o codinome de moreninha. Retornemos ao jardim da vovó da ilha e o seu entorno.

No momento em que a menina brincava de pega-pega com as crianças vizinhas o primo das tantas troças, recém ingresso no curso de medicina, pedia silêncio e distraia-se com a leitura do jornal do dia. Uma cena corriqueira e familiar. Até que Raquel gritasse o socorro que mudaria, de vez, a meninice dos seus pacatos dias. De súbito, o primo solta o jornal e corre até o jardim. Toma a menina nos braços, senta-a na cadeira da varanda e pede para que ela coloque o pé machucado no seu colo. Um ai, ai, ai gemido com gosto compõe a trilha sonora do drama. Ela estica a perna inteira sobre a vista atenciosa do primo até alcançar a calça branca. Enxuga o suor do rosto, passa as mãos molhadas por sobre o vestido, remove a areia do pé e diz – é bem aqui. È quando o primo afasta a vista, desvia o percurso e vai alteando a visão.
Esse é o tempo que não cabe nas horas nem nas palavras. Um breve disparo. Raquel aguarda com paciência que ele remova os resquícios da dor e da descoberta. Ao levantar da cadeira, toma água e percebe a alta temperatura do corpo. Não havia mais suor, o rosto avermelhado pela correria, o ‘desatropelo’ nos gestos. Era um calor calado.


Fim das férias. O retorno à pacata cidade natal. A mãe logo no primeiro momento percebe a estranheza no jeito da menina. Olhar distante, uma desproposital falta de ar e nenhum apetite. Rí em silêncio da ingenuidade da avó e da suspeita da espinhela caída. Uma mulher sabe da outra.

Agora, faltam dois dias, 3 horas e alguns minutos para que o primo chegue de férias ao Ceará. O destino é outro, ele se desloca. Ela conduz o tempo da espera. As horas zombam do desejo. Isso se sabe na mais tenra idade. Por isso até aprendeu a canção. E já não pergunta o nome de um sentimento em desatino. O corpo acordado cantarola e pressente. Há de chover no sertão.

“Qualquer pinguinho de chuva
Fazer uma inundação
Moça se vestir de cobra
E dizer que é distração

"Vocês cá da capital
Me adesculpe esta expressão
No Ceará não tem disso não”