segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O Encontro






Recentemente, conheci um homem que não cabe dentro dele. Mesmo em silêncio,  sozinho é atravessado por desmesuras, por grandiosidades sem nome. Sente a dor dos que já não têm voz, dos que se apagaram por dentro, e pressente a intensidade das almas despertas. Esse homem maior que ele,  usa a voz para dar passagem ao que transborda, para aquilo que nomeiam de divino.  

Canta e, quando pode, dança. Acho que ele não sabe que seus olhos podem ficar estáticos quando a cena é mesma. De outro modo, quando cores e formas movimentam o inusitado, ele se regozija e veste-se de arco-íris dos mais variados matizes.

Reparem, traz um sorriso tímido por detrás da visão.  Não é qualquer visitante que cruza janelas, mesmo que as portas do olhar permaneçam abertas. Ele se desdobra.  Dá uma mão a tudo que é sagrado, e a outra estende para a criança eterna que o habita. Ele poderia soltar pipa todos os dias, poderia deitar na relva e olhar cada pedra como se única fosse e sequer passar as páginas do calendário. É tão livre que decidiu ficar e assentar-se no dorso de palavras encantadas.

Imagino. Não é fácil ser ele. Falou-me em silêncio que seu corpo tem fome de varar estradas, de sentar-se sem ligeireza,  e conversar sem ser notado. Ele guarda palavras, assim como o pastor vela ovelhas. E nosso encontro aconteceu no dorso de letras em profusão.  Se pudesse, o convidaria para viajar de trem e brincar de ver paisagens na janela. De qualquer modo, quando sua imagem aporta na lembrança, peço que permaneça vivo o menino que fundou sua fé. Milagre é brincar com o impossível.  Não seria esse o mistério indecifrável do ato cotidiano de ressuscitar a vida? 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Sete vidas?








Era curvo e de olhar oblíquo.  Não havia certidão de nascimento. Fazia quase dez anos que parou nos oitenta. As mãos carregavam linhas de gerações em colisão. Na sobrancelha esquerda, a moldura do olhar se eriçava no contradito. Suas palavras vinham quase sempre escoltadas por um ponto final.  

Uma cigana de passagem revelou que assim como gato, ele teria sete vidas e completou: sete amores e sete destinos. Morreu a primeira vez  em alvoroço. Quando soube da morte da mãe, correu léguas. Com três dias de desaparecimento, teve seu fim decretado no pequeno povoado de Alto Santo.  Logo depois, por conta do acaso, foi encontrado no mato fechado, próximo a oiticicas.  Dias sem comer e nem beber água. Restava dele um fio de uma coisa qualquer que titulam  de existência.

 Como de costume, o vaqueiro carregava na algibeira uma peixeira,  um pacote de tabaco e  uma foto desbotada da mãe. Ficava sem jeito quando a rádio do Vale tocava Evaldo Gouveia na voz de Altemar Dutra. Pensava, o amor é inimigo do silêncio. A cara da primeira morte ficou cravada na lembrança. Era pálida e havia uma neblina que vestia a dor sem definição de cor. A morte despista imagens para que tudo se cale.

O homem viveu falecimentos de muitas colorações. Enfrentou secas cinzas e de fundas rachaduras na superfície avermelhada da terra. Fome é uma morte que grita os vãos do corpo. Houve muitas outras. Na ocasião em que foi derrubado do cavalo e permaneceu por dias inconsciente, sonhou ser dono de terra e viu capim verde margeando o riacho de água corrente. Essa morte nem valeu. Ao acordar vivo e são ainda parecia embalado pela visão do verde e da correnteza cristalina. 

A sua última história se desenha no cadenceio dessas linhas. O vaqueiro soube da vinda da professora ao pequeno povoado e se achegou. O sol já podia ser avistado por detrás da serra da Micaela, quando o homem apeou o cavalo. Apresentou-se. Narrou seis vidas. E sem dizer por qual razão me pediu para que tomasse a caneta e escrevesse aquilo que seu olhar alcançava. Aqui transcrevo o que vi.

Da vida não se tem escapatória. Disso não sabia. Durei muito tempo enganando a fulana morte. Tá conseguindo pegar a ideia?   Corri de onça, enfrentei o inimigo no bico da faca, saltei de fogaréu, venci a fome, escapei de marrada de touro, mas nunca alcancei a palavra bonita que fala de amor. O tempo tá indo embora. Anota ai essa frase: o amor é uma covardia dos corajosos.

Reparei nos seus olhos cansados e indaguei: quer levar o que escrevi? Ele me olhou arqueando zangado o olho esquerdo e disse: não moça é só para botar num livro ai, o  que o velho vaqueiro descobriu. Pode ser que alguém mais moço ganhe tempo.

Aquele senhor até hoje me fixa o olhar. Escrevi trêmula seu texto de linhas certeiras. Quantas mortes atravessaremos até que a vida se instale no limite em que a palavra escorrega?




domingo, 9 de setembro de 2012

Desencontro



                    Juan Miró





Chegou fora da hora. Tempo não se mede. Nunca houve uma lição que começasse assim: regras do que esperar. Vez em quando alguém lembrava - os apressados comem crú. Que seja, vale até o vazio da fome.


Rosa marcou às nove. Como havia aprendido, fez questão de destacar: 9:00 PM. Vai ver que ele não entendeu. Ficou sem jeito de perguntar e talvez tenha concluído, 21 horas na praça do mercado. Tem gente pra’ tudo que é coisa.


O cheiro de Charisma, lançamento da Avon, impregnava a sala de visita. Na vitrola, rodava As Curvas da Estrada de Santos. A mulher dançava em torno do calor das pernas. Na mão esquerda, pendia um pequeno copo de Dreher.

Esperar muda a direção do desejo.

A excitação das estradas, na voz de Roberto, traz velocidade à cena. A mulher pretende é o risco arranhando o presente. Rosa pediu por tudo para que ele se perdesse. Que o caminho até ela não fosse uma reta.

Qual o quê, ele bateu na porta milimetricamente na hora marcada. De imediato a mulher pensou, isso pode ser um risco para toda vida.

Rosa tomou-o entre mãos e disse: você confundiu as horas. Ele nunca entendeu. Ficou pensando no P e no M. Seriam as letras o motivo do desacordo? E sempre são.

A língua de um homem e de uma mulher segue em letras paralelas.































sábado, 12 de maio de 2012

Tres doses diante do abismo


                                                              Leonilson
                                                              

Escrevo para apagar meu nome.
Georges Bataille


Um trago de aguardente turvou a visão. A mulher da tentação espaçava e cerrava pernas no assento do balcão.  Ausente,  a fêmea vagava o olhar. Tomava o cabelo por entre as mãos e o suspendia até à nuca. Em seguida, soltava os cachos e deixava deslizar os fios no dorso das costas. Na vitrola tocava My Funny Valentine na voz de Dolores Duran. E a mulher cantarolava separando e fechando  suavemente os lábios - Your looks are laughable, un-photographable, Yet, you're my favorite work of art. O disco arranhado compunha com o bar o cheiro excitante da decadência.

Um segundo copo de cachaça acelerou o compasso. O homem seguiu o script da peça tantas vezes encenada.  Nem sequer sabia inglês para tentar provocar uma cumplicidade à distância. Levava apenas um touro faminto na tensão ocultada dos músculos. Retesado como um bom caçador diante da pressa de alcançar a mira. Podia ter evitado o gesto de tomar entre as mãos o úmido lugar do desejo. Ele só tinha imaginação  e mais nada. O seu corpo espelhava-se na tela feminina de brancura carminada, no movimento febril de abrir e fechar asas.

A mulher pede uma dose de vodka e  solve num trago só. Pensa. O obsceno tem lugar no pátio central da solidão. Quase romantiza a cena. Nada, por favor, nada de laçinhos cor de rosa. É apenas nua que quer estar. O homem sabe que qualquer hesitação, ela retorna ao refúgio.  Segue até o balcão e sussurra a única música que sabe de Dolores – Hoje eu quero a rosa mais linda que houver.  Ela apenas ri.  É a última dose.  Duas asas trêmulas pendem diante da sombra do despenhadeiro.


domingo, 25 de março de 2012

O tiro



Sentou na sala de dentro. Lugar dos eventos raros e dos visitantes notáveis. Benedito do Feiticeiro em nada parecia com os homens de ternos impecáveis e sapatos lustrosos que, de quando em vez, abancavam-se na sala de estar. Ele vinha de um povoado com esse nome e que parece ter lhe caído muito bem.

O visitante da tarde vestia terno de linho azul surrado, portava um cinto com pelos de animal e chapéu de tipo sertanejo, com alto relevo nas abas e seis signos de Salomão, que nem o de Lampião. Tinha um lenço avermelhado no pescoço, sustentado por argolas de couro. Uma visão que parecia de filme ou de alguma personagem que fugira das páginas de livros de aventura. Isso porque nos idos da década de 70, a metrópole já era lugar de progresso. Benedito era de outro mundo. 

Na casa, todos foram avisados que não se aproximassem da visita. O final da ressalva vinha num tom quase inaudível: muuuuito perigoso. Procurado pela polícia, perseguido pelos inimigos. Pra’ que? Foi como dizer: menina, fica de vigília. Bem da portinhola do quarto espreitei a chegada do homem. Perigoso. Aquilo ficou ressoando como um estampido de tiro na imaginação, durante a semana que precedera a vinda do visitante. Parecia um conluio entre a vontade de ganhar o mundo e ser ali, mesmo na sala, atravessada por um choque animador. 

O homem do Feiticeiro, seguiu, em passos calmos o jardim antes de sentar na poltrona do canto direito. Tinha ares de animal atravessando a mata. Olhos duros, de presa fora da armadilha. Vi que carregava dois punhais e uma cartucheira enfileirada de balas. Cada uma delas aumentava o ritmo do meu cerco. Seguiu-o até a sala e me pus por detrás da cortina. Imóvel, como convém a uma mulher diante do inimigo. Na espera do dono da casa, ele foi acreditando-se seguro e baixando a guarda. Eu permanecia na tocaia, sem mexer um dedo. Vi o revólver descansando na mesa de centro, ao lado de uma estátua alva da Vênus de Milo. Pensei, é agora. Eu caçadora, ele a presa. Benedito cantarolou o “ Cheiro da Carolina” de Luiz Gonzaga e repeti para mim mesma: é agora. De mansinho, me arrastei para além da cortina, alcancei a arma e dei um tiro único em direção ao teto da sala. Vi Benedito correr sem rumo certo. E não se soube mais dele. 

Permaneci atônita e a casa também. A menina boazinha dissolveu-se numa única bala. Tinha treze anos. E seus olhos não dormiram mais fora da vigília. A cena prosseguiu em cada ato arriscado de esquivar o desejo, entre punhais e gatilhos. Aço e pólvora têm gosto de sangue e perigo. Que assim seja. As palavras armadas temem apenas o risco de esconder-se. Inimigo é o silêncio. E Benedito disso não sabia.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Sopros



Deitou acordada. Não há espaço capaz de aquietar o corpo. Calor e ventilador circulam brincando de esquenta-esfria. Alguns acanhados fios de cabelo voam até o nariz. Ela põe a mão na testa e impede que deslizem. Vira-se para o lado. O médico havia dito que gente que tem sopro no coração deve dormir sempre à direita. A sua tia asmática também tem. Quando soube dessa “cardiopatia congênita” tinha apenas dez anos e nem sabia o que significava a palavra cardiopatia e muito menos congênita. Pensou logo num tumor fatal. Foi a mãe que disse - que é isso menina, tua tia Joana tem esse sopro e está inteirinha. Nunca se sabe o que a mãe é capaz de dizer para ver uma filha apaziguada. Restou sempre essa pulga atrás da orelha.
No outro dia na escola, ficava olhando para cada uma das meninas imaginando se algumas delas sofriam do mesmo mal. Apenas com uma freira pálida, e que vivia acometida de soluços incontroláveis, imaginou compartilhar a doença. A primeira vez que procurou um psicanalista, anos depois, soltou a pérola - é que tenho um sopro. Penso que o homem riu na sua particular tela em branco. Por que pensar nisso uma hora dessas da madrugada? O melhor para o coração nem sempre tem o mesmo efeito sobre braços e pernas. Nada bom dormir do lado direito. Para que serve um cotovelo? Molha os lábios com a língua. Ouviu dizer que ventilador ressaca até a alma. Um joelho magrelo, ossudo espeta o outro. Melhor um lençol entre as coxas. Ah não desejo essa hora não. Quantas pernas cabem no entranhado desassossego? Favorece, sempre, beber água. Assim as sedes se apaziguam.
Um fascínio andar no escuro sob a ponta dos pés. Copo na mão, espreita a janela na amplitude de visão do décimo primeiro andar. O edifício é Mariana, mas falta uma letra e fica Mar ana. Que importa? São três horas da manhã. Um homem empurra a bicicleta, vagarosamente, na rua deserta. Terá um amor? Não parece tão só. O meu, essa falta insone. As horas acorrentadas ao relógio movem-se ao contrário; precisodormir-precisodormir-precisodormir. Fazer o que? Apagar os clarões que sopram. A memória encoberta por sete caixas, sete juramentos, sete lágrimas retidas. É verde o olhar do homem que mexe a música com os dedos. Fagulhas da lucidez que devora.