segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Suave coragem


Gravura de Juan Miro


Armazeno poesias.
Do inverno ao verão.

E, nem sempre.

Durante um tempo.
Fico límpida, distraída.
Imagino ter partido o vocábulo que exaspera.

Cotidiana, conformo.
Faço um bolo confeitado.
Ralho com os filhos e leio Caras.

Ontem,
Vi os sinais do tempo cercando os olhos
E estirando-se sem vergonha sob a pele.
(Pelo menos não devo nada)

Passado,
É aquele beijo estampado na memória
Lembrar rejuvenesce, sabia?

Na rua, agorinha mesmo
O sucateiro brada “quem tem coisas para jogar fora, que traga”
Uma nesguinha de esperança é resto?

O futuro, não ligo.
E nem ele me olha.
Gosto de limpar gavetas e entregar o que não uso.

E daí?
O desassossego não tem pressa.
O poema já sobe a roda-gigante.

Um presente.
Ganhar na mega-sena e peregrinar...
Nem besta. Calaria, como a coragem disfarçada de medo.

Já vai, já vai, já vai!
(homem apressado!)
Toma. Leva o aço, a cerca, o laço,
Da palavra que liberta.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Longe das horas




Olha o relógio e percebe as horas congeladas nos ponteiros. Estranho, cinco-e-quinze. No fogão, a chaleira deixa um vapor constante. O gato espraiado no tapete dorme imóvel. Uma nevasca se interpõe entre seu olhar e o cenário do quarto. Hesitou. E se aquilo fosse a morte, um congelamento cruel do tempo? Consegue mover-se e examina o corpo. Confirma o que pressentia. Um conluio silencioso barra o escorrer da vida. Dói cada ponto de articulação. Havia permanecido inerte, encaixada em invólucro cerceador de gestos e movimentos. Qual tempo havia parado?

Raquel acaricia os cabelos, desalinhando os fios. Pensa. Embaraça tudo que fica longe das mãos. Curiosamente, incomoda o ouvido esquerdo. Havia uma coisa qualquer impedindo a escuta. Lembrou de uma vez ter lido que os ouvidos não têm pálpebras. Como os seus conseguiram fechar-se à música? Uma cantata de contentamento rompe as cancelas. Vivaldi invade sem pressa a paisagem sonora. Onde se encontrava que havia perdido esse Allegro?

Toca o rosto e imagina enxergar o fantasma de Canterville e os olhos fixos de Wilde. Com apenas uma esfregada essa mancha desaparece? As estórias que lemos vagueiam. Uma porta grande, quase da altura do céu, entreabre. Devia existir um espectro de maldade naquelas visões adiadas, abortadas nos dias do fazer, do correr, do deixar o nome cravado em pilhas de documentos. Tlön, Uqbar, Orbius Tertius, valei-me Borges, dá-me um mundo sem fronteiras.

Coça aqui e acolá. Uma breve dormência no corpo. Havia sangue o suficiente? L’ Amoroso vai pisando sutil em cada poro. Vivaldi, o padre vermelho, acende a música no corpo das amantes. Assim, será. Um aroma de sândalo, o mesmo que havia experimentado na Catedral de Santiago ativa a circulação. A mulher mira os olhos da fera adormecida e ganha velocidade. Para montar sem cela é preciso conhecer o trote do cavalo.

Fome. As horas não passam. Muita, muita é a fome. Comer a paisagem verde da Linha da Serra. Raquel imagina as papoulas vermelhas e cada pétala tingindo a língua. Faz mal? Deixa pra’ lá. Reimoso, essa palavra que não existe, é ter que proferir certezas desacreditadas, feitas para informar e oficiar. Lamber o mel que flui pela boca, deixar escorrer até o lugar do grito, da gruta. Lute in D Minor de Antonio circunda o ato.

Cinco-e-quinze. Raquel olha as mãos. Vê letras adormecidas no dorso. Algumas sequer existiam no alfabeto. Dispersos signos luminescentes. Pescar era tão bom. Cada movimento das águas e as bicadas sutis de peixes de todos os tamanhos acordam a alegria. Seriam assim com as letras? Colocar o chamariz e ter tempo de aguardar a fisgada do peixe. A ilusão da isca leva à morte. O peixe dá vida ao pescador. É essa a alquimia do verbo.

Já não importa as horas. As quatro estações derramam um pó mágico nos cantos da casa. O gato ri. A chaleira exibe o aroma quente do café. E a mulher se levanta. Lá fora, o relógio ainda marca cinco-e-quinze. Nesse amplo lugar de dentro, lá fora pode ser qualquer hora. Não é?