sábado, 31 de julho de 2010

O gosto bom do pecado



Gustav Klimt


Atravessou a sala com uma dormência nas pernas. Um grito calado, aprazado, pode ficar guardado onde não deve. o homem transportava esse travo na garganta. Santo é que não era. Tinha dentro das calças um anseio que tinia, envergonhado e intenso. O padre bem falou na sacristia que o proibido tem um jeito matreiro de se espichar no corpo dos pecadores. O guardador de rebanhos ficava tão só, tão deserto que a imaginação era ovelha desgarrada. Pulava cancelas, desfazia os perímetros da propriedade. Não se oculta, nem cerceia o que já irrompe em liberdade. Por tal razão, a primeira visão acopla alucinação e fascínio, vontade e irrealidade. Um homem adiado se perde no vazio. Naquele dia, um abandono fazia do corpo do pastor um bicho em compasso de fuga. Ele, lentamente, desgarrava-se do rebanho. Deitado na sombra do ipê amarelo, o pastor fechou os olhos e tentou enganar a friagem. Afora as ovelhas, nada parecia mover-se naquele lugar deserto.

Foi quando uma aragem, um farfalhar de arbustos despertou o homem da letargia. Ele esfregou os olhos e prostrou-se de joelhos diante do que via. Uma mulher, uma quase deusa, atravessava o pasto em um cavalo cinza-prateado, com os cabelos roçando a sela e o corpo todo assentado sobre o dorso do animal. Uma aparição fantasmal para o final de uma tarde cinzenta de inverno. Com um rápido impulso, ele correu em direção ao cavalo e conseguiu segurar as rédeas. A mulher apenas ergueu os olhos e se demorou sobre o homem. Suas mãos alvas, sem proteção, tremiam de frio. Não havia palavras, apenas espera. O pastor recolheu a mulher do cavalo e fitou-a, demoradamente, entre os braços. Ela pedia, pedia uma coisa qualquer que ele antevia. Afinal de contas, um homem que aguarda sabe o que busca uma mulher em disparada.

Deitou-a na relva e a cobriu contra o frio. Com a boca soprou um hálito quente por sobre o rosto da desconhecida. A mão da mulher percorreu as costas e desceu até encontrar o cajado. Era tarde. Dissolvidos no calor da paisagem nua. Não há língua capaz de traduzir o improvável. O cavalo permanecia amarrado, as cabras mordiscavam o pasto, folhas do ipê amarelavam a sombra e um grito em dueto arrebentava o tédio. Até que o tempo o despertasse. Ele atravessasse a sala da dona, rumo ao escritório do patrão. E por lá avistasse a mulher deitada na poltrona, estendida por sob os fios dourados dos cabelos e um olhar de fome selvagem. As pernas do homem pediam passagem e se rebentava o dilúvio do pecado adiado. Os dois entreolharam-se, homem e mulher, e entenderam o gosto molhado do interdito. Não havia cercas no pasto.