domingo, 26 de abril de 2009

Carta para uma deusa com um p.s para Deus


Eu te carrego entre traços rabiscados. Minha mão e a tua, espalmadas, exibem dedos longos. Uma música é tocada no movimento de teus lábios. Teus olhos se movem para lugares distantes quando a voz de Roberto diz: “detalhes tão pequenos de nos dois são coisas muito grandes pra’ esquecer”. Ele nunca aceitou esse outro que invadia sorrateiro o teu folhetim, o teu rebolado na ponta dos pés, essa boêmia de Noel espalhada nas calçadas de Santa Isabel e a entidade suspensa que tu carregas e te espreita. A tua busca se inicia nas escadarias da Glória e descamba nas festas de Iemanjá. Eu surgi dessa promessa, mescla entre sagrado e profano.


Movo-me reta como se carregasse um cetro invisível e um domínio encantado. Você me deixou um titulo de nobreza. Eu guardo aquela foto em que você me sorri e comemora o nascimento entre peitos e braços. Você é deusa de reino distante, daquelas que cruzam o tempo em cavalo veloz e eu parte do teu bando. O vestígio de tua passagem se desenha na ponta do sorriso que faz mover o canto esquerdo dos meus lábios. Tenho um tanto do teu olhar que vagueia curioso e outro tanto que se derrama felino. Eu aprendi a dançar gafieira sob a mira dos teus movimentos sem nunca teres tomado minhas mãos nessa direção. Teu lugar de dançar é sagrado. Eu carrego a Lapa em noites de boêmia. Meus passos te acordam.


Não nascemos para ter marido, essa entidade amorfa, embora o amor bata quase sempre em nossa porta. Casamos com amantes eternos. Gasto tudo que tenho em jogos de alegria. Feito comer em mesa farta, viajar sem destino e ter filhos em demasia. Tenho tido sorte mamãe. Quando fico cansada trago para junto a imagem do Cristo Redentor de “braços abertos sobre a Guanabara”. Eu hoje moro perto do céu e já suporto o brilho das estrelas. Diz para Deus que sou grata por sua extrema gentileza comigo. Ele me carrega. Quando preciso dormir braços e pernas me velam. Quando for partir um séqüito de borboletas e aves de penas leves me conduzirá. Livre. E estará escrito: ela cumpriu a promessa.


para Suely

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Desarnada


Eu sou banhada por pressentimentos. Trago no cabelo uma marca de antecipação do tempo e uma mancha escura desenhada no ventre. Vejo um tanto de coisas que vagueiam superfícies. Nasci sob o signo dos ventos. Mesmo quando o corpo ocupava lugares de ficar, movia-me sob possibilidades. Habitava esse interregno, esse lugar de passagem, entre o ponto e o infinito. Por isso, meu corpo tantas vezes buscou espaços apertados entre portas e paredes, lugares velados entre cortinas, esconderijos vedados da vontade de partir.


Minha natureza é andarilha. Se você olhar demorado, verá entre minhas unhas um tanto de barro e argila, pequenas serragens de madeira e estilhaços de pedras. Precisei fundar um torrão de terra, até ter lugar para voar e retornar. Como disse, sou atravessada por sentimentos. Tenho um olhar deslocado das imagens fixas, dos atravessamentos que margeiam o leito visível dos rios.


Minha atenção é movida por correntezas. Por isso, tantas vezes me assustei com a beleza e a grandeza dos espaços sem cancelas, sem limites para minhas pernas. Eu precisei criar minhas próprias paredes, um telhado com clarabóia e vista para o céu. O vento assobia nos meus ouvidos para que eu não deixe asas presas em cadeiras e birôs. Conservo passagens secretas, roupas leves e um vento veloz aqui dentro. Eu me salvo entre brechas. Cada letra é uma pena delicada e única. Eu me apego a palavras que não existem. Todos dizem que sou muito, muito desarnada. E sou. Ainda assim, se sentirem minha ausência, olhem por detrás das portas, vasculhem sombras e casulos. A menina vadia e avoante que me habita, às vezes, sente partida a linha da pipa. Quando isso acontecer, apenas sinalizem pedaços amorosos de chão. Ela aportará de asas abertas. Dentro dos seus olhos uma vasta floresta e um punhado de vaga-lumes. Pequenos vestígios de pressentimentos.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A guardiã do tempo, a manga e o amor


O nome dela é Cosminha e seu mundo vive sob eterna neblina. Ela se assemelha aquelas imagens de santas envoltas em fumaças milagreiras. Tão miúda que seu sorriso se arruma debaixo dos meus braços. Cada vez que tomo o caminho das pedras e desço em sua direção, sei que atravesso uma zona fronteiriça. Toda a mata verde contorna sua pequena morada e emoldura gentileza. Nem por isso ela dispensa seu cão de guarda de olhos amarelados e orelhas suspensas. Ela sabe dos que se matam na ponta da faca por pequenas desavenças, dos que bebem e deliram a ausência da pessoa amada e vê a voracidade dos homens grandes que devoram e desmatam a terra dos pequenos. Eu sigo aqui o rastro de suas palavras. Para evitar o perigo ela mandou construir um portão de madeira preso apenas por um pedaço de arame. Ela vive sozinha em sua casa no topo da Linha da Serra diante da paisagem que margeia o sertão. Fala que medo tem é de gente que carrega maldade no coração. A terra a perder de vista que possui na serra é símbolo da passagem de todos os seus ancestrais na extensa Linha. Ela repete: vender para que? O dinheiro some, a terra fica. São poucos os móveis que ocupam os quatro cômodos da casa. Ela retém o que precisa para viver: pedaços de pão e retalhos da memória. Seu fogão de lenha resiste ao tempo e deixa permanecer intacto o de gás, coberto com um pano bordado. Faz sua própria comida, varre o terreiro, lava seus panos e remove, cotidianamente, a poeira do tempo. Tem sempre água benta e reza benfazeja para os visitantes que se aproximam.
Eu trago aqui Dona Cosminha, essa senhorinha de 90 anos, para dizer do amor. Num final de tarde, na sua sala ela me indaga - bichinha você sabe o que é um grande amor? Meio sem jeito respondi, acho que sei e em seguida indaguei – por que Dona Cosminha? Ela se levanta, mostra uma frondosa mangueira e narra sua história com os olhos banhados de imagens.
Meu velho, Valdemiro plantou essa mangueira há muitos anos atrás. Você sabe né minha filha que se leva muito tempo, às vezes até nunca, para se comer o fruto de uma árvore plantada. Um belo dia, vindo da roça, meu velho entra com uma manga-rosa na mão. A manga era tão perfeita que parecia um gesto de bondade de Deus. Ele senta ao meu lado, toma a manga entre as mãos, e com sua faca vai tirando talhos finos da casca. Quando o amarelo já estava todo descoberto ele corta o primeiro pedaço e diz, é seu Cosminha e, em seguida come o segundo. Esse era o fruto mais esperado. Isso é amor. Você entendeu agora minha filha?
Fiquei plantada no silêncio. Diante dos meus olhos havia passagem para uma mangueira carregada de lembranças. O que diriam os filmes marcados pelo drama, os romances conturbados, os poemas sôfregos e os capítulos passionais de novelas diante daquela forma de amar mesclada aos ritos do tempo de plantar, colher e dividir ? E eu, teria algo a dizer? Olhei por dentro da minha paisagem amorosa e vi extensões de terras a semear. Eu me perco dentro do meu próprio chão. Haveria algum fruto entornado ao relento? Olhei para ela, que se diz agora minha mãe preta e revelei, com o coração apertado – preciso aprender sobre o tempo Dona Cosminha, água benta capaz de molhar e fazer vicejar uma história de amor. Desde esse dia plantei uma árvore.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Abismo


Eu tremi diante dos teus olhos. Tuas palavras abriram portas e janelas sem anúncio de chegada. Vocë sabe como me fazer derreter e me deixar boiando no fluxo do teu olhar. Um dia já fui me buscar tão longe! Eu sou testemunha que um só corpo não é capaz de abrigar uma vontade em desatino. Há um abandono de justa causa todas as vezes em que pedaços de mim partem em tua direção. Eu nunca tive fronteiras. Por isso, quando tuas palavras vibram como cordas musicais eu prenuncio vias de perdição. Finco os pés no chão e tento me dizer fixa, de contornos precisos. Não posso ir embora para vocë. Não existe trilha sonora capaz de traduzir em imagem nossos enlevos. Ficou turva a memória. Entre nós dois existe um despenhadeiro, uma ponte elevadiça suspensa no tempo. Embora saiba voar, tenho medo de alturas. Existe um sopro de música entre o chão e o planeta de nós dois. Ouço acordes de uma cançao sem gravidade. A tua voz me transporta em um tapete nada mágico e mudo de futuro. Nunca soube ninar esse sentimento insone que atravessa dobras do tempo. Vou repetir até que ouças: desperto e tremo diante de teu olhar. Danço que é para disfarçar esse turbilhonar do meu corpo diante de tua visão. Misturo passos e tropeço entre teus pés. Tua mão enlaça minhas costas e toca minha indecisão. Eu preciso ir. Nunca entendi porque teus braços prendem minhas pernas bem no momento em que ensaio gestos de partir. Eu continuo pequena e as estradas são tão largas. Não tem ninguém que aponte a direção de mim. Eu temo não saber o caminho de volta e permanecer nesse espaço infinito de passagem. Por isso, continuarei atravessando o deserto sob a mira do teu olhar. Trëmula e lívida. Deitada por sobre o abismo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Suaves armadilhas



Do meu lugar floresta te vejo. Uma visão fosforescente de bicho que espreita o alvo. A rede atirada rente ao chão detém e enlaça o objeto do desejo. Você presa, pulsa de vontade. Há pressentimentos de que minha chegada restaurará aquele som-gemido que agita noites e burla posições horizontais. Eu não tenho modos. Meus dedos deslizam por cada nó e lambem as marcas da espera. Eu desenlaço os fios da imaginação. Tenho lápis de todas as cores. Fiz uma borboleta de traço livre no teu ombro esquerdo. Aprendi a fazer fitas e desatá-las com a ponta dos dedos e dos dentes. Alcanço o lugar do labirinto e miro teus olhos inquietos. Entrelaçados aos meus pés. E miro até nem saber onde estou. Você sabe que posso me perder.


Quer que eu te solte?


Você se contorce e eu me deito sobre tuas costas. Cada uma das palmas de minhas mãos toca teus ouvidos. Abro pequenas conchas e falo baixinho: tomarei tuas pernas e soltarei as cordas. Soprarei aromas de madeiras sem lei por entre os relevos da paisagem de tua pele. Sei que tu me escutas. Meus olhos centelhas de verão eriçam teus pelos e derramam pequenas brasas. Você aguarda a brisa de orvalho que se espalhará sobre teu corpo feito combustível. Ela se alastra. Ouvi um estouro de boiada. Você escuta fogos de artifício? Eu retornei para a mesma rede em que te encontras. Uma seiva bruta desliza suave entre braços e pernas e nos conduz ao sol. Sou apenas porções de pólen entre teus lábios. É vasta a floresta.

(estive um tempo viajando, por essa razão passei um tempo sem postar e nem comentar, fico feliz em retornar o contato com todos vocês)