Ele dobrou a esquina e, de imediato, a vista turvou. Nada parecia familiar. A cidade que percorria há poucos minutos havia embaralhado imagens, fachadas e o desenho das vias. Pensou que a loucura deve se iniciar, na confusão dos signos; daquilo que se vê diante do que foge à imaginação. Ele andou mais uns cem metros e aprumou o olhar: não havia edifícios, não havia placas indicativas, semáforos. Tudo transcorria em câmara lenta. Homens e mulheres caminhavam como que num acordo íntimo entre o pisar e o ir. Vez por outra, alguém interrompia o trajeto e trocava palavras e acenos. Andar era um ato sinestésico, tátil, generoso. Prescindia sempre de um outro, flutuações de encontros por vir. A paisagem era placa luminosa derramando aquarela. O homem tentou apalpar o lugar em que se movia. Olhou as mãos, ainda tão nitidamente suas. É que um fio invisível interligava velhos, bebês, crianças, gente grande de todas as cores. Viu, esfregando os olhos de incredulidade. Uma mão, embora distante da outra, continha impressões, odores e aperto de dedos. Era como se um corpo iluminasse caminhos desencontrados. Cada um compunha múltiplos arranjos. Podia a cidade ter alcançado a condição de música? De uma polifonia dissonante e sublime? Poderia ter ele atravessado dobras através da vibração de tons desafinados? O homem foi examinando braços, mãos, pelos do corpo, dedo por dedo, fios de cabelo e, a cada toque, inundava-se de uma canção de descoberta. Um impulso nascente, de rasgo de sol no alvorecer, de luz invadindo retinas incidiu sobre cada parte de seu corpo, até então, imerso na escuridão. Ele costumava dizer “eu só sei do perigo quando levo um tiro no peito”. Diante de uma cidade que acaricia, sussurra segredos no ouvido, desliza suavemente a língua, o homem perde a guarda. Acende-se a dor da primeira queda de bicicleta, do costumeiro riso de sua gulodice escancarada, do escárnio diante de seus óculos “fundo de garrafa”, amarrados num barbante gasto e frágil. Ele enxerga. É subitamente tomado por um lampejo de amor-ternura diante de vidas apagadas, adiadas, retesadas num grito eternamente contido. Ele cruza a fronteira dos sentimentos. Entrelaçada à sua mão, dedo bordando dedo, transfigura a imagem dela. Em alto relevo, compondo figura e fundo. Uma elegia do amor.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
domingo, 20 de setembro de 2009
Amor é imaginação
“Se não chegas nem pelo sonho, por que insisto em te imaginar?”
Cecília Meireles
Cecília Meireles
Era bem cedo, quando ele cruzou a porta. Não anunciou o nome e muito menos o motivo da repentina visita. Já foi entrando e recorrendo a quem lá estivesse: é aqui que vive a poeta? Ozanira, Joana de nascimento, tinha o dever sacramentado de interceptar a entrada de estranhos. Dona Cecília não podia escrever nenhuma linha, dizia a moça – com aquele fervilhão de gente atrás de falar com ela. Para chegar à escritora, primeiro tinha que tirar prosa com Ozanira. Ela era a dona do tempo. Escrever é um modo de se abster das horas. Naquele dia, Cecília despertou com uma réstia de sol perfurando a brecha da cortina e fazendo luz nos olhos dela. Imaginou atraso e se lançou fora da cama, em sobressalto. Essa mania eterna de correr atrás de "nãoseiquê" mesmo que o dia escorra em abundância. Imediatamente, o relógio ostenta a hora certa: sete da manhã. Quase brincadeira de mau gosto. Esperou por toda a semana esse instante de não ter obrigação. E acorda, exatamente pontual. Imaginou de pronto que sol é do gênero masculino, diferente da lua. Que ele rasga o dia alumiando tudo, furando a noite, não deixando um recanto permanecer apagado. E sem que qualquer coisa a demovesse da idéia, se pôs e esbravejar o astro e seus inconvenientes raios. Arrogante! Essa foi a sua mais leve palavra. Esse cerzir da vida leva um pedaço para, logo em seguida, estampar compensações. O aroma do café trouxe lembranças de menina. A fazenda Cachoeirinha, o mugido das vacas no curral e o chocalho das cabras no terreiro. Toalha de linho e bem ao lado da xícara de Cecília, a tapioca branquinha recheada com queijo coalho. Um estômago tem fome de generosidades postas à mesa. Ela toma o primeiro gole de café e sorri. Havia sido severa com o sol. Afinal de contas, fazer despertar pode ser uma forma de amar. Esparramou-se no sofá e deixou o tempo passar, descansado. Quando ele chega, o desconhecido, a mulher já ganhou ternuras. Aqui mora a poeta? Cecília se agita e, curiosa, responde: aqui mora poesia. E você, quem é? Ele murmura, por saber que cruzou a casa como um raio, e a faz recordar - meu nome é Mário. E evoca o motivo de um amor nunca dito. Eu sei da tua timidez. Não temas: “o luar é a luz do sol que está dormindo”.[i] Cecília se remexe no sofá, balbucia o nome do poeta e concede a esse amor o sono infinito. Ozinira, do lugar dela pensa alto – essa Dona Cecília escreve coisas no pensamento.
[i] “Verso avulso” de Mário Quintana
sábado, 12 de setembro de 2009
Rita e Sofia - metamorfoses de setembro
Frida Kahlo
Era setembro. De um tempo que foge por entre os dedos. Lá fora, o galo teima em cantar um dia que nunca amanhece. Um nome é um código de decifração. Ela decidira alterar o de batismo. Rita é graça de mulher que carrega tormenta. Apenas a de Chico leva sorriso e um bom disco de Noel. Tinha a mãe que escolher logo esse nome de santa. Ter nascido no dia 23 de maio poderia ter resultado em salvação. Um nome leva um tempo para ser inscrito. Precisava tatear um tanto da sombra, daquele outro nome que permanece nas entrelinhas da certidão. Sofia. Um chamamento que susurra. Deve existir um véu capaz de encobrir o nome da mulher. Foi dessa forma que ela vestiu, pela primeira vez, aquele tubinho cor de carmin. Havia três anos que ele esperava no armário. Vermelho é uma cor que não combina com vergonha. Rita compunha sua personalidade discreta com um cinza sobre bege, algumas vezes tendendo para o grafiti. Sexo é uma conversa que demanda arco-íris, aquarela pronta para se derramar. Foi Sofia quem percebeu a eterna indecisão de Rita. Uma mulher acompanha bem as rasuras da outra. Se não fosse ela, jamais teria sido marcado o encontro com o desconhecido. Ele parecia uma graçinha na web cam. Uma barba rala, um olhar de gente malina, de boa mira. Na tela, ela tinha os lábios pintados de vermelho e o lápis deleineando os inexatos verdes de seus olhos. Obviamente, desde o início, ela se apresentou com o nome de Sofia. Imagina se o clima teria subido tanto a temperatura se falasse: meu nome é Rita, quase como quem pede perdão! Sofia desceu as escadas em disparada. Se faltasse luz, ela não ficaria retida no elevador. Além disso, os vizinhos não sabem que o limiar é o lugar do desejo e ele não tem nome. Chegou antes da hora no Café Damasco. Sentou na mesa ao lado de uma tela de Frida Kahlo. E contemplou. Duas mulheres plantadas e nuas. Entrelaçadas à condição de fêmea, de relva, de mata selvagem. Ganhou, repentinamente, uma imprecisa convicção. Foi quando um homem atravessou a porta do café e indagou: é você Sofia. Ela, sem titubear, respondeu: não, meu nome é Rita. Um rasgo do sorriso de sofia, lhe tangia o canto dos lábios. Um homem , que pulsa, sabe que pouco importa como se chama uma mulher. Ele tateia e encontra nomes próprios e impróprios. Deitados, nessa tela primaveral de setembro.
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