sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Cavalo da Noite

Renoir

A imaginação é a memória que enlouqueceu.
Mário Quintana


Ela deitou-se cedo. Na dita hora em que o buraco se abria diante dela. Deviam ter avisado, desde as primeiras estórias, que gente grande se perde nos vazios. A escuta de vozes e o barulho dos gestos acordados preenchiam o escuro. Nem chá de cidreira, nem a bendição da reza, muito menos ameaça de castigo faziam a menina adormecer. A mãe trouxe até uma moça do sertão para acompanhar as noites insones de Carolina. E quase rogou à criatura que desse um jeito da filha deixar a casa dormir. Maria maluca, como era chamada por todos, foi a responsável por parte da estranheza que a não mais menina experimenta ao cair de cada dia. Imagina ter que esperar todas as noites por um homem montado à cavalo, trazendo o número do jogo do bicho escrito na testa. Maria dizia que gente inocente é que servia para receber recados de Deus ou do Diabo. Por anos seguidos, Carolina aguardou recolhida a visita do desconhecido. Nessa noite, vestiu a camisola de seda que ganhou da madrinha, tomou entre as mãos o livro de Mia Couto e embromou a hora do medo. Afinal de contas já fazia mais de vinte anos que o cavaleiro da noite ameaçava aparição. Uma mulher que acorda quase nunca se esquiva do mistério. O sinal das linhas era traçado “Na berma de nenhuma estrada” – quem amamos nasce antes de haver o tempo. Soltou de súbito o livro e sentiu os olhos marejar. Trouxe à tona a interminável espera do homem que nunca viera. E foi recordando cada traço do visitante distante: a camisa aberta até a cintura, a mão firme no cabresto, a ligeireza no trote do cavalo e o olhar de bicho fosforecendo o escuro. Ao alcançar as mãos do vaqueiro, parou de súbito e percebeu que ele carregava no dedo médio um anel de madrepérola. Entre pequenos fios de lágrimas Carolina desenhou um riso de formosura. E se o anel fosse a prenda que o cavaleiro guardara por todo o tempo da interminável viagem. O medo fecha cancelas. Deitada é que não ficaria mais. Foi até o espelho e viu que sequer penteara os cabelos, havia também a palidez das virgens e as luzes apagadas em todos os vãos do corpo. Carolina atirou as vestes e abriu as janelas. Os códigos alteraram a senha. O homem podia vir com o bicho escrito na testa, podia vir. Ela aceitaria os desígnios de Maria. Nua como convém a uma mulher que visita aquele que espera. E finalmente pode fechar os olhos. Sentiu os galopes do cavaleiro rasgando o caminho nas veredas . E se deixou percorrer. Maria Maluca havia deixado plantada a chave do enigma – para dormir é preciso estar acordada. Quando o dia amanheceu, fez sua fé no jogo do bicho. Viu dois “um” estampado na testa do cavaleiro e indagou – que bicho é esse – o homem respondeu – é cavalo.