sábado, 12 de maio de 2012

Tres doses diante do abismo


                                                              Leonilson
                                                              

Escrevo para apagar meu nome.
Georges Bataille


Um trago de aguardente turvou a visão. A mulher da tentação espaçava e cerrava pernas no assento do balcão.  Ausente,  a fêmea vagava o olhar. Tomava o cabelo por entre as mãos e o suspendia até à nuca. Em seguida, soltava os cachos e deixava deslizar os fios no dorso das costas. Na vitrola tocava My Funny Valentine na voz de Dolores Duran. E a mulher cantarolava separando e fechando  suavemente os lábios - Your looks are laughable, un-photographable, Yet, you're my favorite work of art. O disco arranhado compunha com o bar o cheiro excitante da decadência.

Um segundo copo de cachaça acelerou o compasso. O homem seguiu o script da peça tantas vezes encenada.  Nem sequer sabia inglês para tentar provocar uma cumplicidade à distância. Levava apenas um touro faminto na tensão ocultada dos músculos. Retesado como um bom caçador diante da pressa de alcançar a mira. Podia ter evitado o gesto de tomar entre as mãos o úmido lugar do desejo. Ele só tinha imaginação  e mais nada. O seu corpo espelhava-se na tela feminina de brancura carminada, no movimento febril de abrir e fechar asas.

A mulher pede uma dose de vodka e  solve num trago só. Pensa. O obsceno tem lugar no pátio central da solidão. Quase romantiza a cena. Nada, por favor, nada de laçinhos cor de rosa. É apenas nua que quer estar. O homem sabe que qualquer hesitação, ela retorna ao refúgio.  Segue até o balcão e sussurra a única música que sabe de Dolores – Hoje eu quero a rosa mais linda que houver.  Ela apenas ri.  É a última dose.  Duas asas trêmulas pendem diante da sombra do despenhadeiro.