segunda-feira, 27 de julho de 2009

A nascente do encantamento: o mouro e a moira (parte três)




Silêncio. Daqui ouço os gemidos de Raquel e o arrastar das correntes. Um prazer em tom de lamento que alteia o som quando se instala o vácuo. Alguns fios podem compor uma forma de narrar história. Raul, mouro da dinastia Almorávida, chega a Península Ibérica trazido pelos ventos da ameaça de reconquista de Al-Andalus. Durante as cruzadas, protegido por seu elmo e armadura, Raul incorpora a alcunha de homem de ferro, o gigante. Não tinha cara, nem sabia do corpo. Restava uma dormência. O guerreiro havia tomado o lugar do homem. Suas mãos reconheciam apenas a superfície fria e sólida do escudo e o fino desenho da lança. Os braços eram talhados para movimentos de força, de gestos largos e firmes. Todos os sentidos do guerreiro se voltavam para uma única direção: o inimigo. Curiosamente, uma vida se conta mais pelos desvios de rota do que pelos itinerários traçados nos mapas. Na batalha de Zalaca, um confronto decisivo, Raul e seus guerreiros derrotam o Rei. Os mouros ocupam o palácio, assassinam seus guardiões e, inusitadamente, encontram no calabouço a princesa Raquel, filha primogênita do Rei. Assim como Raul, ela também vivia uma batalha entre mundos de limites tênues. Raquel havia sido acusada de feitiçaria e de uso de poderes obscuros. Ela detinha o poder de misturar os códigos entre mundos forçosamente cindidos.
Não havia armadura nem elmo capazes de inibir a correnteza que tinha sua nascente no corpo da feiticeira. Ela via para além dos escudos, das paredes grossas do castelo, dos limites do reino, das linhas que pareciam separar céu e terra. Carregava um desassossego povoado por seres de terras diversas e proferia um dialeto intraduzível no léxico local. A presença e o domínio dos mouros tornam-se ameaçadora não apenas devido a extorsão de riquezas e terras, mas pelo temor das crenças inspiradas na magia e em tudo aquilo que não se vê. A princesa vivia no limbo, presa entre dois mundos. Já pelos denominados bárbaros é tida como moira encantada. As lendas dizem que as moiras, donzelas de irresistível beleza e poder de sedução, podem ser confundidas com montes, florestas e rochedos.

É desprovido da proteção de ferro sobre o corpo, de anteparo por sobre os olhos que Raul fita Raquel. Um guerreiro sabe quando é atingido frontalmente. Logo, é tomado por um fogo devastador, que só acende, só ascende. Ele sabe que não mais alcança sua armadura. Rende-se ao corpo. Toma entre as mãos a pele branca da princesa e avança, até alcançar um ponto com desenho de infinito. Penetra a escura caverna. Raquel, a moira, guardiã dos locais de passagem, fonte selvagem da manifestação do sobrenatural ela, fêmea encantada, toma a mão do homem e o conduz ao interior da terra. Entorpecidos, para que nunca se quebre o encanto. Com seu pente de ouro, tocado aos fios longos dos cabelos negros da mulher, Raul quebra a corrente que separa os mundos e permanece.