sábado, 28 de fevereiro de 2009

acordada


Era noite. Um silêncio que fazia tilintar os pequenos gestos. Tua mão adormecia sob a cabeça e tuas pernas enlaçavam as minhas. Eu permanecia acordada. O movimento de tua respiração dizia do profundo do sono. Pequenos espasmos confirmavam a entrega. Eu poderia assim, como quem não quer nada, deslizar minhas pernas nas tuas. Deitar minhas mãos sobre teu pescoço e roçar o canto do desejo. Ir virando-me lentamente, deitando minha respiração quente rente à tua orelha e derramar insinuações. Cada dedo traçaria levemente o caminho da tua boca e te alcançaria. Eu te tomaria por uma das mãos embalando os teus sonhos do meu corpo. Em fluxos e refluxos de marés altas. Leves como convém a um homem que dorme e uma mulher que navega. Com a outra mão te cobriria os olhos. Permanecerias, assim, com um tanto de mim assentada e outro tanto imagem borrada. Retiraria, suavemente, minhas pernas das tuas e me elevaria e te levaria. Em movimentos contínuos de abrir e fechar as portas. Até que toque de recolher nos devolvesse o silêncio dos pequenos gestos. Eu amanheceria.


(para o homem que enxerga, mesmo que faça escuro)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

auto-retrato



O verde fala de mim
A chuva fez esse acontecimento
Tenho a planta dos pés banhada da seiva dos andarilhos
Raízes me assanham os cabelos
Eu vento
Entremeada aos fios de dois
Tenho amor brotado na palma da mão
E um pássaro pousado na testa
Suas asas aninham
Eu me assento
Não tenho vergonha de dizer que sinto
Uma ausência de nascença
Coração semeando intensidades
Amores-seiva respingando pétalas
Flores sem alento
Embora teu amor segure minhas mãos
E a brisa toque delicada as palavras
O susto é disparado
Na vastidão da floresta
Fazendo sempre-verde o sentimento






sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

o carnaval da linha


é quase carnaval. As fantasias foram tiradas das gavetas. Entoa canções no ar que dizem do desejo dos encontros marcados pelo fugidio e êxtase do mistério: “quem é você, adivinha se gosta de mim, hoje os dois mascarados procuram os seus namorados perguntando assim”. O amor da passante, da última vista como diz Beaudelaire. A vertigem do explosivo, da potência do que dura e se apaga em segundos. Desfilam nos blocos, nos corpos carnavalescos e nos corações foliões amores contidos, perdidos, rompidos: “alecrim está chorando pelo amor da colombina, no meio da multidão”. Olhares se cruzam e se perdem. São lícitos os beijos roubados. As vinganças de rompimentos e dores ganham passagem no carnaval. “hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria, quero que você me assista, na mais fina companhia, se você sentir saudades por favor não dê na vista”. O carnaval é o compasso do tempo que não espera. A saudade deve ser pintada de alegria, mesmo que no rosto fique cravada a lágrima do pierrô. As ladeiras fazem despencar a alegria e desfazem as mãos:: não se perca de mm, não se esqueça de mim, não desapareça”. A cachaça vira água e a chuva mistura-se ao ‘suor e cerveja”. Bruxas se encontram com piratas, duendes, anjos, capetas, irmãos metralhas, barras de chocolates, cotonetes gigantes; fundem-se no jogo de poder ser outro, por quatro dias. “Eu sou a filha da chiquita bacana, puxei a mamãe (esse ano) não caio em armadilhas”. Subirei a serra nítida como a paisagem. “hoje não tem dança, não tem mais menina de trança, nem cheiro de lança no ar, hoje não tem frevo, tem gente que passa com medo e na praça ninguém pra’ cantar. Minhas máscaras me usam quando fico tímida. Já me pertencem. Eu sou, parodiando Roberto Carlos, uma brincante a moda antiga. Da potência da alegria que faz pinotar desejos dos “cordões de saideira, vendo a vida se enfeitar”. Eu quero brincar no carnaval. E vou. Da Linha da Serra vejo o desfile de paisagens margeadas por cercas-vivas de papoulas. Tão vermelhinhas, tão vermelhinhas! As ladeiras seguram minhas mãos e eu tateio o infinito. “acho que a chuva ajuda a gente a se ver”. E o por-do-sol também. No meus olhos permanecem serpentinas de todas as cores. Eu te vi, você me vê. Sem máscaras. É carnaval. Ah! quase esqueço. Vou fantasiada de borboleta. Você voa comigo?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Argonauta


Trago um olhar vasto
Que nem cabe em oceanos
Sobrevivo navegando linhas

Sou grata às palavras
Elas me produzem terras
Fincadas na palma dos pés

Tenho pressentimentos de gaivota
Diante das asas da imensidão
Embora as alturas me tonteiem.

Aprendi a segurar tuas mãos
Infinitos novelos de chão
E assoprar meu medo
De vastidão

Tu me recebes transbordada
Em teu colo quente
Finca tua âncora
Eu ninho

Quando subir alto, meu bem
Você tem a linha
Segura com a ponta dos dedos

Eu voarei sozinha.

(para a mulher que enxerga)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Navegar é (im) preciso


Atravessei a porta da sala inundada. De quantos sentimentos retesados no ar é feita a poesia? Nem falar, nem escrever iriam diminuir por menor que fosse essa enchente. A Dom Luís estava clara e eu na penumbra. Passei na Bibi comprei um bolo grande salpicado de bolinhas de chocolate, umas bem pretinhas, outras bem branquinhas. Fazem croque-croque na boca. Fui parar mais longe. A roda-gigante do Parque Santo Estevão em Quixadá, a pipoca fazendo eco, o medo das alturas aninhado na mão do primeiro amor. A memória tem trilha sonora. Eu sou uma Dj de lembranças mixadas no presente. “Receba as flores que te dou e em cada flor um beijo meu....” – Deseja mais alguma coisa minha senhora? - Oh coragem dessa mulher! - Quer que eu diga mesmo? A gente não tem sossego. - Ei moça, bota uma empadinha de camarão. Pra’ comer aqui. Melhor assim. Estava tonta de coisas sem cara, sem nome, sem nenhuma posologia do modo de sentir. Acredito que sou boa para definir sentimentos. Camarão é bom demais. O resto eu não sabia. Nem sequer me pertenciam. Permaneci navegando no “Transatlântico” sem navio, sem bóia, sem salva-vidas, sem timoneiro. Deslizando fortalezas. Eu não imaginava de que matéria era feita aquela alegria tão vasta de um além mim. Líquida é que não devia ser. Gasosa. Dessa matéria que deixa a gente flutuando com os pés no chão. Navegar é preciso e eu aposto nos náufragos. De um estado qualquer das palavras. Diluídas, para abrandar as dores no “Chá de Abu”. As palavras, Fernanda, são cousas que nos carregam que nem submarinos? O jardim de Anna Karine é feito de palavras-hera, alastraram-se em meus muros e eu vou buscar outras mudas. As bolinhas de chocolate caem bem nessa manhã de domingo. O sol deixa a paisagem de todas as cores. Minhas linhas içam pipas em novas direções. Elas cruzam com tantas outras no céu de fortaleza. Aqui, me reconheço. Fragmentos saem da gaveta e eu já nem me sinto tão erma. Tenho sentimentos de gratidão em doses altas.

Fayga, Danni e Laura vocês entoam mar adentro as “palavras de pórtico” de Fernando Pessoa:

“Navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para casar com o que sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar”

Terra a vista!

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sob as asas do silêncio (epílogo)


Klimt

Foi preciso um tempo de silêncio e de espera. Não sou uma mulher de meias palavras. Minha história é testemunha do meu gosto por elas. Costumava, desde cedo, subir nos lugares mais ermos e ouvir seus ecos. Ainda criança, escalava o pico de uma serra do Vale do Jaguaribe e lançava nomes de tudo que é jeito para imensidão do sertão. De cima da Micaela gritava os mais bonitos para a minha alegria: Vó Sinhá, Belinha, a burra que me carregava entre os caçoas até o açude e outras vezes, suspirava fundo e empinava a palavra vento. Eu imaginava que ele corria mais veloz por isso. Um dia, colhendo algodão descobri meu tino: sou uma agricultora de palavras. Elas me nasceram e emprenho tantas quantas queiram vir ao mundo. Somos da mesma família. Naquela manhã, quando aquele homem abriu a porta do meu quarto, nenhuma delas veio ao meu encontro. Meu querer por ele era um deserto de explicações. Encontrou-me nua e assim permaneci. Falcão gritou o meu nome da forma tão muda como a minha fome. Meu corpo pressentiu sua visita. Antes de ultrapassar a porta na companhia da massagista, ouvi o eco do seu desejo esbarrar no meu. Entrei no quarto e aguardei a passagem. As mãos firmes da mulher acenderam o óleo na ponta dos meus pés. “Dona Raquel? Dona Raquel?” Olhei em volta e me vi abandonada por qualquer dito capaz de dar o sentido de cancela, de impedimento. Ainda deitada, virei em sua direção e vi o olhar do homem se derramando por cada canto do meu corpo. Ele havia ultrapassado as paredes. Como disse, qualquer palavra despencaria no vazio. Uma delas veio em minha direção, quase em tom de confissão mútua – “Tá doido, ta doido”? – Ele gritava repetidas vezes o meu nome e eu o remetia aquele lugar despovoado – a nossa compartilhada loucura. Falcão abriu a porta e eu calei. Era alta a temperatura. Imediatamente, ele retoma o caminho de volta. Isso ele não disse. Coloquei um vestido por cima do corpo e levantei-me em sua direção. Movida, inicialmente sob o pretexto de adverti-lo, de indagá-lo das razões de sua entrada súbita. Ao sair do quarto percebi o rastro de seu cheiro. Um aroma de mato que após a chuva levanta o mormaço das memórias de um dia quente. Gritei algumas vezes o nome dele. Por um momento imaginei que nunca mais retornaria. E, voltei. De costas ele me tomou pela cintura, suspensa no tempo e disse – me salva! Eu havia perdido o meu plantio de palavras. Que poderia eu falar para o homem que havia me levado ao lugar mais ermo de mim? Fechei os olhos e fiquei. A obra ganhava seus últimos contornos - o criador, a criatura. Ele me conduziu ao décimo primeiro andar. Até o topo. Lá de cima, ensaiei um grito sem nenhuma pretensão de sentido. Foi quando vi um pássaro veloz carregando esse vento. Seu hálito quente ainda sopra no dorso do meu silêncio. Eu escalei essa altura. Daqui de cima me solto e, finalmente retomo o verbo. O eco de tua voz rente a minha anuncia: mulher! Eu ganhei o céu sob tuas asas.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O óleo derramado (parte quatro)


Gustav Klimt

Não é fácil contar uma estória dessas não. Tem gente falando que é para ir direto ao ponto. Que ponto? Esse é um pecado que nem o escapulário do meu santo protetor deu jeito. Sou nascido no dia de São Expedito, aquele das causas difíceis. Minha mãe diz que sou guardado por ele. Para mim o ponto começou na rajada de vento, daquele final de tarde. Precisava ter avistado aquela mulher tão nua? Precisava ter deixado meu olhar ficar tão junto do dela? Tem fogo ali dentro, com cheiro de tentação e um anúncio escrito: gostosa! Eu me vi nu no espelho dos olhos dela. Feito retrovisor no banco detrás. Isso fica bonito para um refrão de forró. Pode ser cantado assim:
Será paixão esse desassossego. Que me tira do sério. Me deixa em desespero.Eu me vi nu no espelho dos olhos dela....
Naquela manhã, na frente da porta de Dona Raquel, eu pensei - Falcão, larga disso, tu é um homem direito. A piora de tudo é que o mestre de obras é meu sogro. Namoro a filha a mais de três anos e sou como ele mesmo diz – seu braço direito. Posso botar tudo a perder, basta minha mão mover um pedaçinho que seja daquela porta. Voltei ao ponto esperado. A porta, cancela da minha fome por ela, já não empata nada. Soltei a marreta, plantei-me bem na frente e falei – Dona Raquel - umas três vezes, desenfreado. Sem pensar, muito menos esperar resposta agarrei a maçaneta e fiz o movimento. Calculei uma palma da mão de abertura. Foi o que precisava, e vi. Deitada na cama de massagem, com uma calçinha branca, os seios posicionados na minha direção, banhados de óleo, redondos e firmes que nem holofotes na escuridão. Cada um cabe na palma da minha mão. Eu cresço. Seu corpo é um terreno a espera da obra. Eu sou o homem que faz. Vou levantá-la pegando cada uma de suas pernas, até a boca ficar rente a minha e depois a escancho no meu colo. Encaixados. Agora, não vejo mais nada, apenas a porta preparando a entrada. Finalmente, sinto esse pedaço de madeira deslizar nos trilhos. Não existem mais barreiras. Muito, muito gostosa! Eu páro. Logo, ela grita – Falcão, fecha essa porta! Sabe o meu nome – ela me quer. Nem tentou se cobrir, pelo contrário, virou o rosto na minha direção e gritou – tá doido homem?! Bem mais que isso, louco e cego de vontade. Se não fosse aquela mulher, ali no quarto. Se não fosse o medo que tive de mim mesmo e o susto dela ao me enxergar para além das paredes, caibros, tijolos, cimentos, portas e fechaduras eu derramava o meu óleo por dentro de seus cantos escuros. Com os dedos da minha mão, calejada de desejo eu a seguraria para que ela me deixasse passar e ficar ali dentro. O resto do meu corpo ia escorrer que nem tinta e marcar a pele daquela fêmea para ela nunca esquecer. A melhor massagem de sua vida. Esquecia era nunca! Essas mulheres bacanas sabem lá o que é homem de verdade.
Ela se levanta, olha nos meus olhos, agarra minhas mãos e fecha a porta. Sua respiração é tão desenfreada quanto a minha e os seus seios apontam o rumo do nosso desejo. Não tenho mais nada a dizer. A verdade de um homem tem quase sempre desavença com a verdade de uma mulher. Dou passagem para que ela fale. Eu já disse a minha história. È bom que ela confesse o que se deu entre nós dois. Nem que seja apenas no quarto trancado dessa carta secreta. Vou ser despedido mesmo, pouco importa. Que ela fale do antes, daqueles minutos de tempo que entraram feito marreta em todos meus alicerces. Apenas eu e ela. Duvido que ela vá direto ao ponto, de como deixou crescer meu desatino em direção incerta. Desde o vento. Em cada reparo, retoque, necessidade de prego, de gesso, uma telha a mais, um rodapé; cada feito tem o olho dela no meio, em busca do meu. Você nega?