domingo, 21 de novembro de 2010
Prelúdio de partida
(Paulo Leminski)
Coração não bate
na repetição.
Existe alguém nesse lugar que ainda sinta?
O que ora ouço
é dissonoro com o meu canto
O grito é uma palavra que desespera?
os sinos da Igreja defronte badalam
éhoradeiréhoradeiréhoradeir
Tem quem repare nos famulentos que dormem em volta do lago?
A palavra perdeu a beleza
na cidade que espera
Cada coisa, mesmo sagrada, tem preço?
Pouco importa os muros caiados
se cada um porta a máscara
Você que me escuta abre mão de uma ilusão partida?
Saio vestida de arco-íris
e uma fortaleza de janelas abertas para o mundo
Quando os sinos anunciarem novas horas, mesmo distante, indagarei ao tempo
O amor sobrevive ao esquecimento?
Sobrevive?
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Nau dos delirantes - epílogo
O padre fechou os punhos, cerrou os lábios e apertou as pestanas até poder nada mais presenciar. Enxergou pernas brancas e proibidas roçarem a rigidez de suas armaduras. Subiu-lhe às narinas um cheiro do mato quando a chuva bate e levanta uma espécie de mormaço verde e, sem poder disfarçar, o sangue tomou-lhe as faces. O reverendo dobrou-se junto à mulher e compôs uma curiosa visão. Os dois agachados assemelhavam-se a penitentes cientes de seus mais graves pecados.
Ao redor dos dois, como uma febre contagiosa, todos os que tiveram amores partidos, promessas adiadas, desejos guardados foram aproximando-se e posicionando-se diante do rio. As orações transmudadas em canções de amor. Uma polifonia de sentimentos de todos os tempos, de todas as cores, de todas as idades repercutiu na floresta. Eram tantos e fartos que os pássaros aquietaram-se e repetiram seus acordes. Zunindo através dos ventos, os amores daquele lugar tão pequeno, de um esquecido povo ribeirinho, deslizou rio adentro. Orelano atrelado ao leme sentiu o impacto de tantos lamentos. Seria febre, visagem da solidão da proa e do mato? E o som ecoou mais nítido e ressoou bem no meio do peito do timoneiro. O imperativo do regresso permitiu um giro fácil de retorno do barco. Os que dormiam no convés, em redes armadas lado a lado, pouco perceberam a volta.
Em linha horizontal ao cais, um cordão de gente continuava a entoar canções e arremessar a vista para o curso norte do Amazonas. Sem fome, nem sede apenas adiamentos. A noite acirrava a gelada sensação da espera. Lá no fim da linha, onde o horizonte se perde, um dos cancioneiros avistou o gaiola. Madalena continuou, como desde o início, assentada e lívida, a espera do homem amado. O barco apartou sob o alarido dos cânticos. Todos, ali dentro, dormiam. Apenas Orelano desceu em direção ao cais. Trouxe um pano fino, belo como o mistério. Avistou a amada e dirigiu-se até posicionar-se bem detrás de seus longos cabelos. Vestiu suas costas geladas com um pano de delicadeza. Era seda, ela já havia experimentado antes.
O homem derramou sobre a mulher as lágrimas da mata. E ela sequer atrevia-se a olhar para trás. Havia, agora, a vida pela frente. No mais, todos se ergueram e voltaram aos seus afazeres. A lenda conta, porém, que naquele acanhado vilarejo – noites e noites, muitos ainda acenam chamamentos de amor. A estória de Madalena é apenas um acorde que ultrapassa limites. Escute. Com ouvidos colados ao vento, qualquer um pode entoar canções. Regra excepcional: aguardar o movimento imprevisível das águas. Precaução: não temer o naufrágio. Convicção: os amantes navegam a alucinação.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Nau dos Delirantes - Parte Um
Era de seda, sentiu assim que tocou a carne. Um musgo esverdeado escorria pelo pescoço e pendia para o lado. Frio que nem a noite solitária. A mulher sequer atrevia-se a olhar para trás. Conserva-se ajoelhada na margem esquerda do rio e retinha por entre as mãos a âncora do barco partido. Madalena é uma alcunha que condena, já dizia a avó do mato. Havia mais de dois dias de desalento e nenhum sinal dos céus ou assobio alvissareiro dos ventos. A hora da partida do timoneiro, daquele que deixou sua vida à deriva, não cabia nas horas de espera. A mulher jurou para os santos que só sairia dali amarrada ao seu homem. Nem promessa era aquela ausência de razão.
Logo nas primeiras horas, gente de todos os lados, passava, entreolhava-se e zombava da mulher chorosa agarrada ao cais. Alguns acreditavam que era questão de minutos e a saudade se recolheria em busca de terra firme. Madalena nunca foi uma mulher de trocar sentimentos, muito menos de fazer fita. Assentou-se à beira do Amazonas e viu o navio gaiola seguir altaneiro na direção de Santa Maria de Ojeal. Era setembro dos ventos e das ondas orbitais. Antes de subir no barco, Orelano pousou os olhos nos seios fartos da mulher, nos olhos amarelados de cobra peçonhenta, na sua pele luminosa da cor de manga rosa e tremeu de cima abaixo. Antevia a dificuldade de seguir, tendo que abandonar a fêmea que o fez acordar. Mesmo um homem que parte pode ficar atado ao desejo.
Após o primeiro dia, uma multidão de curiosos foi cercando a mulher ancorada, por assim dizer. Quem a indagava se queria comer, beber um gole de água respondia – minha fome e minha sede têm nome. Mandaram chamar o padre até a beira do rio, mesmo não sendo o dia das confissões. Enquanto isso, um grupo de mulheres decidiu ‘puxar’ um pai-nosso, seguido de três ave-marias, rogando a Deus conformação. Tanto alvoroço e, renitente, a mulher apenas aguardava o milagre do retorno. Finalzinho da tarde do terceiro dia chegou o padre. A sede, a fome e o sol úmido dos trópicos já quase faziam a mulher delirar. Ele aproximou-se de Madalena, também em posição de circunflexão, e indagou o motivo de tanto pesar. A mulher sustentou seus grandes olhos fixos em direção a vista turva do padre e apenas interpelou – você já amou monsenhor?
sábado, 31 de julho de 2010
O gosto bom do pecado
Gustav Klimt
Atravessou a sala com uma dormência nas pernas. Um grito calado, aprazado, pode ficar guardado onde não deve. o homem transportava esse travo na garganta. Santo é que não era. Tinha dentro das calças um anseio que tinia, envergonhado e intenso. O padre bem falou na sacristia que o proibido tem um jeito matreiro de se espichar no corpo dos pecadores. O guardador de rebanhos ficava tão só, tão deserto que a imaginação era ovelha desgarrada. Pulava cancelas, desfazia os perímetros da propriedade. Não se oculta, nem cerceia o que já irrompe em liberdade. Por tal razão, a primeira visão acopla alucinação e fascínio, vontade e irrealidade. Um homem adiado se perde no vazio. Naquele dia, um abandono fazia do corpo do pastor um bicho em compasso de fuga. Ele, lentamente, desgarrava-se do rebanho. Deitado na sombra do ipê amarelo, o pastor fechou os olhos e tentou enganar a friagem. Afora as ovelhas, nada parecia mover-se naquele lugar deserto.
Foi quando uma aragem, um farfalhar de arbustos despertou o homem da letargia. Ele esfregou os olhos e prostrou-se de joelhos diante do que via. Uma mulher, uma quase deusa, atravessava o pasto em um cavalo cinza-prateado, com os cabelos roçando a sela e o corpo todo assentado sobre o dorso do animal. Uma aparição fantasmal para o final de uma tarde cinzenta de inverno. Com um rápido impulso, ele correu em direção ao cavalo e conseguiu segurar as rédeas. A mulher apenas ergueu os olhos e se demorou sobre o homem. Suas mãos alvas, sem proteção, tremiam de frio. Não havia palavras, apenas espera. O pastor recolheu a mulher do cavalo e fitou-a, demoradamente, entre os braços. Ela pedia, pedia uma coisa qualquer que ele antevia. Afinal de contas, um homem que aguarda sabe o que busca uma mulher em disparada.
Deitou-a na relva e a cobriu contra o frio. Com a boca soprou um hálito quente por sobre o rosto da desconhecida. A mão da mulher percorreu as costas e desceu até encontrar o cajado. Era tarde. Dissolvidos no calor da paisagem nua. Não há língua capaz de traduzir o improvável. O cavalo permanecia amarrado, as cabras mordiscavam o pasto, folhas do ipê amarelavam a sombra e um grito em dueto arrebentava o tédio. Até que o tempo o despertasse. Ele atravessasse a sala da dona, rumo ao escritório do patrão. E por lá avistasse a mulher deitada na poltrona, estendida por sob os fios dourados dos cabelos e um olhar de fome selvagem. As pernas do homem pediam passagem e se rebentava o dilúvio do pecado adiado. Os dois entreolharam-se, homem e mulher, e entenderam o gosto molhado do interdito. Não havia cercas no pasto.
domingo, 20 de junho de 2010
A Sombra
“Um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas”
Hilda Hilst – Obscena Senhora D
Inventar um tempo fora da métrica. Sentado na beira da calçada, desmedido de números. Nas mãos, um punhado de vontade guardada. Assovia uma música e se perde nas letras. Três bilhetes de cinema no bolso esquerdo. Chegou atrasado.
Pétalas de rosa murcham no livro de página dobrada. O cheiro engavetado de esquecimento. No compartimento secreto, por isso aqui não revelado, o retrato do amor que teve um fim. Melhor não voltar atrás.
Um homem calvo e de olhos fundos oferece o carnê do Baú. Ainda existe? A mulher de trança e rosa cor de urucum, bem rente a orelha, compra dois. Ah – se eu ainda tivesse essa esperança – devaneia o tempo. Os cabelos nem tão negros da moça tingem lembranças. Desamarela o desejo atingido pela distância. O calendário é testemunha. Essa sangrenta sucessão dos fatos.
Na banca ao lado, uma manchete em caixa alta exibe a lâmina inflexível e crua daquilo que chamam vida – Adeus, Saramago. Luminosa a morte das palavras que não calam. Ninguém repara que o relógio da praça inverte os ponteiros e exalta os segundos. Ninguém.
O tempo, masculinamente, leve as mãos à braguilha e coça, e coça. Gritos, apitos, e batuques se agitam. É gol? Goooooooooooooool. O rebuliço das horas que pulam do relógio. Esquecer é um encantamento raro. Algumas vezes, nem o tempo colabora. Essa iluminura obsessiva cujo nome é saudade.
Um torcedor agitado pisa atordoado por sobre os pés do tempo. De pronto, ele devolve o desaforo – vá de retro satanás. Xingar é bom demais. É tarde, melhor retornar às horas. A lucidez perdeu os olhos vastos de Saramago e o mundo corre atrás da bola. Não há silêncio.
Indiferentes seguem os passantes. O tempo retorna aos ponteiros. Ninguém crê. Cômoda a cegueira dos que metrificam os atos e os dias. Ele cospe no asfalto e ri. Diáfano o feito de ofuscar a vida que escorre.
Perdoa se perdi a conta. Nem eu vi.
sábado, 5 de junho de 2010
Disfarce
Leonilson
Permanecia calada. Feito porta. Feito pedra. Não que tenha dispensado as palavras. A moça era dona de um repertório cotidiano. Lamentava a pressa dos que carregam seus corpos para o trabalho, o calor que escorre morno por entre as costas, o preço da passagem que sobe e o dinheiro que diminui. Ralhava o governo e o açougueiro com o mesmo grau de indignação e o mesmo tom desaforado de voz. Afinal de contas, dizia ela, eram iguais, sobreviviam à custa de carne e sangue. Para quem cala, a língua torna-se arma e afia os ritos da indignação. No bairro, tinha o codinome “língua solta”. Ana conquistara assim o mais perfeito disfarce. Falava aos borbotões e preservava intacta a palavra que senta e sente. Sem som, sem sentido. Levava os dias nesse vai-e-vem. Reclamar é um ato que apenas ganha propriedade quando o corpo todo se movimenta. Fazia isso como ninguém. Gesticulava para todos os lados, sentava, levantava e cuspia nas palavras. Poucos desconfiavam do motivo de suas ausências. Vez ou outra se vestia como uma dama colocava um caderno na bolsa, uma caneta de escrita fina, seus óculos de grau 2.5 e saía para um destino incerto. Atravessava vias e cruzava esquinas com a curiosidade de um escafandrista. Mergulhava no movimento à cata de perplexidades, rastos de solidão, dores, medos e desafetos invisíveis. Era uma colecionadora de palavras afogadas nas ruas. Após o tempo de passagem, Ana retornava a casa, como quem volta das compras. Antes de entrar, ao avistar a vizinha, amaldiçoa o trânsito e o lixo; depois diz mal do comércio e de seus preços. Entra no quarto só dela, leva as mãos até o rosto cansado e deixa a lágrima adiada descer. Chora por crianças sem rumo e sem mão, por mães sem lugar, por amores sem o outro, por fábricas que já não aceitam gente, por entorpecimentos vãos, por tantos muros e medos. Chora. Toma os óculos nas mãos, a caneta entre os dedos e retoma a escrita. O livro segue o caminho do fim. “Alma vazia. Grita a dor do mundo. Mesmo sabendo que todos os ouvidos serão surdos a ela”. E desenha, finalmente, o nome próprio - Suely. Calada, feito pedra.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
O Cavalo da Noite
Renoir
A imaginação é a memória que enlouqueceu.
Mário Quintana
Ela deitou-se cedo. Na dita hora em que o buraco se abria diante dela. Deviam ter avisado, desde as primeiras estórias, que gente grande se perde nos vazios. A escuta de vozes e o barulho dos gestos acordados preenchiam o escuro. Nem chá de cidreira, nem a bendição da reza, muito menos ameaça de castigo faziam a menina adormecer. A mãe trouxe até uma moça do sertão para acompanhar as noites insones de Carolina. E quase rogou à criatura que desse um jeito da filha deixar a casa dormir. Maria maluca, como era chamada por todos, foi a responsável por parte da estranheza que a não mais menina experimenta ao cair de cada dia. Imagina ter que esperar todas as noites por um homem montado à cavalo, trazendo o número do jogo do bicho escrito na testa. Maria dizia que gente inocente é que servia para receber recados de Deus ou do Diabo. Por anos seguidos, Carolina aguardou recolhida a visita do desconhecido. Nessa noite, vestiu a camisola de seda que ganhou da madrinha, tomou entre as mãos o livro de Mia Couto e embromou a hora do medo. Afinal de contas já fazia mais de vinte anos que o cavaleiro da noite ameaçava aparição. Uma mulher que acorda quase nunca se esquiva do mistério. O sinal das linhas era traçado “Na berma de nenhuma estrada” – quem amamos nasce antes de haver o tempo. Soltou de súbito o livro e sentiu os olhos marejar. Trouxe à tona a interminável espera do homem que nunca viera. E foi recordando cada traço do visitante distante: a camisa aberta até a cintura, a mão firme no cabresto, a ligeireza no trote do cavalo e o olhar de bicho fosforecendo o escuro. Ao alcançar as mãos do vaqueiro, parou de súbito e percebeu que ele carregava no dedo médio um anel de madrepérola. Entre pequenos fios de lágrimas Carolina desenhou um riso de formosura. E se o anel fosse a prenda que o cavaleiro guardara por todo o tempo da interminável viagem. O medo fecha cancelas. Deitada é que não ficaria mais. Foi até o espelho e viu que sequer penteara os cabelos, havia também a palidez das virgens e as luzes apagadas em todos os vãos do corpo. Carolina atirou as vestes e abriu as janelas. Os códigos alteraram a senha. O homem podia vir com o bicho escrito na testa, podia vir. Ela aceitaria os desígnios de Maria. Nua como convém a uma mulher que visita aquele que espera. E finalmente pode fechar os olhos. Sentiu os galopes do cavaleiro rasgando o caminho nas veredas . E se deixou percorrer. Maria Maluca havia deixado plantada a chave do enigma – para dormir é preciso estar acordada. Quando o dia amanheceu, fez sua fé no jogo do bicho. Viu dois “um” estampado na testa do cavaleiro e indagou – que bicho é esse – o homem respondeu – é cavalo.
A imaginação é a memória que enlouqueceu.
Mário Quintana
Ela deitou-se cedo. Na dita hora em que o buraco se abria diante dela. Deviam ter avisado, desde as primeiras estórias, que gente grande se perde nos vazios. A escuta de vozes e o barulho dos gestos acordados preenchiam o escuro. Nem chá de cidreira, nem a bendição da reza, muito menos ameaça de castigo faziam a menina adormecer. A mãe trouxe até uma moça do sertão para acompanhar as noites insones de Carolina. E quase rogou à criatura que desse um jeito da filha deixar a casa dormir. Maria maluca, como era chamada por todos, foi a responsável por parte da estranheza que a não mais menina experimenta ao cair de cada dia. Imagina ter que esperar todas as noites por um homem montado à cavalo, trazendo o número do jogo do bicho escrito na testa. Maria dizia que gente inocente é que servia para receber recados de Deus ou do Diabo. Por anos seguidos, Carolina aguardou recolhida a visita do desconhecido. Nessa noite, vestiu a camisola de seda que ganhou da madrinha, tomou entre as mãos o livro de Mia Couto e embromou a hora do medo. Afinal de contas já fazia mais de vinte anos que o cavaleiro da noite ameaçava aparição. Uma mulher que acorda quase nunca se esquiva do mistério. O sinal das linhas era traçado “Na berma de nenhuma estrada” – quem amamos nasce antes de haver o tempo. Soltou de súbito o livro e sentiu os olhos marejar. Trouxe à tona a interminável espera do homem que nunca viera. E foi recordando cada traço do visitante distante: a camisa aberta até a cintura, a mão firme no cabresto, a ligeireza no trote do cavalo e o olhar de bicho fosforecendo o escuro. Ao alcançar as mãos do vaqueiro, parou de súbito e percebeu que ele carregava no dedo médio um anel de madrepérola. Entre pequenos fios de lágrimas Carolina desenhou um riso de formosura. E se o anel fosse a prenda que o cavaleiro guardara por todo o tempo da interminável viagem. O medo fecha cancelas. Deitada é que não ficaria mais. Foi até o espelho e viu que sequer penteara os cabelos, havia também a palidez das virgens e as luzes apagadas em todos os vãos do corpo. Carolina atirou as vestes e abriu as janelas. Os códigos alteraram a senha. O homem podia vir com o bicho escrito na testa, podia vir. Ela aceitaria os desígnios de Maria. Nua como convém a uma mulher que visita aquele que espera. E finalmente pode fechar os olhos. Sentiu os galopes do cavaleiro rasgando o caminho nas veredas . E se deixou percorrer. Maria Maluca havia deixado plantada a chave do enigma – para dormir é preciso estar acordada. Quando o dia amanheceu, fez sua fé no jogo do bicho. Viu dois “um” estampado na testa do cavaleiro e indagou – que bicho é esse – o homem respondeu – é cavalo.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
A escrivinhadora
Palavras descarriladas não movimentam lembranças
Uma estória pode encontrar um fim trágico, ou cair no esquecimento. Melhor que tivesse sido assim. Palavras guardadas são como se não houvessem nascido. Joana fechou portas, janelas e abaixou o volume da música. Fincou cada minuto da atenção no ato de cuidar do lugar. Nas horas vagas, recebia alunos para aulas de reforço. E no final do dia, quando o silêncio trocava de turno com o sol, regava pequenos jarros de alecrim e manjericão. Ela tinha sua própria estória. Era preciso atenção com cada coisa que forma o sucessivo do tempo, tarefas de uma mulher casada. O intemporal é irmão do vento. E o vento embaralha os planos de cada dia. É preciso apenas uma vez. Como na narrativa que se segue. O mais curioso é que é preciso apenas uma brecha, para que o vento assopre. Joana sabia disso mais do que ninguém. E a casa tinha o tom de todos os dias. Cada almoço era acompanhado de um suco com frutas da estação. Um dia, um sopro de extraordinário invadiu o lugar. De uma forma também extraordinária. Joana tomou uma manga entre mãos e viu a intensiva beleza do amarelo escorrendo por entre os dedos. Com a língua, removeu o sumo da fruta que escorria livre. Foi num relance, num minuto de nada que o cheiro da manga trouxe até a casa uma estória que precisava ficar esquecida. Para disfarçar, a mulher se pôs a cantar. Desde pequena tinha esse hábito. Qualquer dor, desavença, medo ela acreditava poder espantar entoando canções em voz alta. E assim fez. Começou em voz baixa, envergonhada pela tom desafinado, pelo desuso da música. A primeira foi um cântico da Igreja. Em seguida, passou para uma marchinha de carnaval, até que cantarolou um pedaço de “Jura Secreta”. E os gestos trouxeram lembranças. As mãos da mulher deslizaram nos cabelos ondulados, abriram passagem no decote e um riso maroto rasgou a ponta dos lábios. “Só uma coisa me entristece, o beijo de amor que não roubei”. Foi esse o trecho que levou Joana para longe dali. Uma breve suspensão do tempo. A hora do almoço se aproximava do relógio! E Joana de imediato pensou – sentimentos sabem como ocupar terras não plantadas. Bonito isso! Podia muito bem tirar o caderno da gaveta e apenas rabiscar o dito. Nem demandava escrever a estória toda. Não. Um cheiro de queimado tomou conta das letras. O fundo da panela revelava a distração: a galinha seca grudada disforme. Ela antevia que bastava uma frase, uma escritura inventada, para a imaginação ultrapassar as paredes da casa. “Só uma palavra me devora, aquela que meu coração não diz”. A música não para e os ouvidos não têm cancelas. Joana olhou pára suas mãos e pediu compreensão. Estórias são memórias de fios infinitos. Escrever poderia fazer retornar a mulher que não cabe em um lugar. A aproximação da hora do almoço emitia um som tonal, como ruído repetitivo – tempotempotempo. Infinitamente. Era preciso fazer algo para não morrer. Joana então abriu a gaveta e encontrou o caderno de tantas estórias desenhadas com palavras e lágrimas. Tomou a caneta entre os dedos, com o coração aos pulos. “Nada do que quero me suprime”. Era seu segredo. Colocou o caderno sobre a mesa. Desenhou algumas palavras com a letra mais legível que pôde traçar em toda a vida. Como uma nota de fim de página rabiscou: a palavra é o bote que me salva. Quando a porta abriu, ela simplesmente disse: o almoço queimou. Você tem fome?
(Jura Secreta - composição de Sueli Costa / Abel Silva)
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