“Um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas”
Hilda Hilst – Obscena Senhora D
Inventar um tempo fora da métrica. Sentado na beira da calçada, desmedido de números. Nas mãos, um punhado de vontade guardada. Assovia uma música e se perde nas letras. Três bilhetes de cinema no bolso esquerdo. Chegou atrasado.
Pétalas de rosa murcham no livro de página dobrada. O cheiro engavetado de esquecimento. No compartimento secreto, por isso aqui não revelado, o retrato do amor que teve um fim. Melhor não voltar atrás.
Um homem calvo e de olhos fundos oferece o carnê do Baú. Ainda existe? A mulher de trança e rosa cor de urucum, bem rente a orelha, compra dois. Ah – se eu ainda tivesse essa esperança – devaneia o tempo. Os cabelos nem tão negros da moça tingem lembranças. Desamarela o desejo atingido pela distância. O calendário é testemunha. Essa sangrenta sucessão dos fatos.
Na banca ao lado, uma manchete em caixa alta exibe a lâmina inflexível e crua daquilo que chamam vida – Adeus, Saramago. Luminosa a morte das palavras que não calam. Ninguém repara que o relógio da praça inverte os ponteiros e exalta os segundos. Ninguém.
O tempo, masculinamente, leve as mãos à braguilha e coça, e coça. Gritos, apitos, e batuques se agitam. É gol? Goooooooooooooool. O rebuliço das horas que pulam do relógio. Esquecer é um encantamento raro. Algumas vezes, nem o tempo colabora. Essa iluminura obsessiva cujo nome é saudade.
Um torcedor agitado pisa atordoado por sobre os pés do tempo. De pronto, ele devolve o desaforo – vá de retro satanás. Xingar é bom demais. É tarde, melhor retornar às horas. A lucidez perdeu os olhos vastos de Saramago e o mundo corre atrás da bola. Não há silêncio.
Indiferentes seguem os passantes. O tempo retorna aos ponteiros. Ninguém crê. Cômoda a cegueira dos que metrificam os atos e os dias. Ele cospe no asfalto e ri. Diáfano o feito de ofuscar a vida que escorre.
Perdoa se perdi a conta. Nem eu vi.