quinta-feira, 16 de abril de 2009

A guardiã do tempo, a manga e o amor


O nome dela é Cosminha e seu mundo vive sob eterna neblina. Ela se assemelha aquelas imagens de santas envoltas em fumaças milagreiras. Tão miúda que seu sorriso se arruma debaixo dos meus braços. Cada vez que tomo o caminho das pedras e desço em sua direção, sei que atravesso uma zona fronteiriça. Toda a mata verde contorna sua pequena morada e emoldura gentileza. Nem por isso ela dispensa seu cão de guarda de olhos amarelados e orelhas suspensas. Ela sabe dos que se matam na ponta da faca por pequenas desavenças, dos que bebem e deliram a ausência da pessoa amada e vê a voracidade dos homens grandes que devoram e desmatam a terra dos pequenos. Eu sigo aqui o rastro de suas palavras. Para evitar o perigo ela mandou construir um portão de madeira preso apenas por um pedaço de arame. Ela vive sozinha em sua casa no topo da Linha da Serra diante da paisagem que margeia o sertão. Fala que medo tem é de gente que carrega maldade no coração. A terra a perder de vista que possui na serra é símbolo da passagem de todos os seus ancestrais na extensa Linha. Ela repete: vender para que? O dinheiro some, a terra fica. São poucos os móveis que ocupam os quatro cômodos da casa. Ela retém o que precisa para viver: pedaços de pão e retalhos da memória. Seu fogão de lenha resiste ao tempo e deixa permanecer intacto o de gás, coberto com um pano bordado. Faz sua própria comida, varre o terreiro, lava seus panos e remove, cotidianamente, a poeira do tempo. Tem sempre água benta e reza benfazeja para os visitantes que se aproximam.
Eu trago aqui Dona Cosminha, essa senhorinha de 90 anos, para dizer do amor. Num final de tarde, na sua sala ela me indaga - bichinha você sabe o que é um grande amor? Meio sem jeito respondi, acho que sei e em seguida indaguei – por que Dona Cosminha? Ela se levanta, mostra uma frondosa mangueira e narra sua história com os olhos banhados de imagens.
Meu velho, Valdemiro plantou essa mangueira há muitos anos atrás. Você sabe né minha filha que se leva muito tempo, às vezes até nunca, para se comer o fruto de uma árvore plantada. Um belo dia, vindo da roça, meu velho entra com uma manga-rosa na mão. A manga era tão perfeita que parecia um gesto de bondade de Deus. Ele senta ao meu lado, toma a manga entre as mãos, e com sua faca vai tirando talhos finos da casca. Quando o amarelo já estava todo descoberto ele corta o primeiro pedaço e diz, é seu Cosminha e, em seguida come o segundo. Esse era o fruto mais esperado. Isso é amor. Você entendeu agora minha filha?
Fiquei plantada no silêncio. Diante dos meus olhos havia passagem para uma mangueira carregada de lembranças. O que diriam os filmes marcados pelo drama, os romances conturbados, os poemas sôfregos e os capítulos passionais de novelas diante daquela forma de amar mesclada aos ritos do tempo de plantar, colher e dividir ? E eu, teria algo a dizer? Olhei por dentro da minha paisagem amorosa e vi extensões de terras a semear. Eu me perco dentro do meu próprio chão. Haveria algum fruto entornado ao relento? Olhei para ela, que se diz agora minha mãe preta e revelei, com o coração apertado – preciso aprender sobre o tempo Dona Cosminha, água benta capaz de molhar e fazer vicejar uma história de amor. Desde esse dia plantei uma árvore.

31 comentários:

  1. coisa linda, a D. Cosminha. Deu vontade de abraçá-la.
    saudades de tu
    um beijo

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  2. As pessoas mais simples podem não ser as mais estudadas, mas com certeza são as mais sábias. Muita coisa só a vida mesmo que ensina.

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  3. parabens pelo teu texto, Lindo, é muito bom ler um post assim.
    Maurizio

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  4. Estive aqui e vi a beleza de D. Cosminha.

    Beijo imenso
    Carpe Diem!!

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  5. que lindo, glória. beijo nos olhos dela. e nos teus :)

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  6. Aloha Glória!!

    Sinto-me privilegiado duas vezes!!

    Primeiro por sua generosidade em compartilhar essa atitute amorasa de D.Cosminha!!

    Segundo por estar vivo para ler esse gratificante texto!!

    Deixo uma sugestão!! Podes até ignorá-la. Não acarretará em problema algum!!

    Incluir a vida e esse testemunho em vida no Museu da Pessoa do Brasil... Eis a Url.

    http://www.museudapessoa.net/oquee/

    Abraço D. Olga que em Julho completará 104 anos, após ter vivido longos anos nos campos de concentração da Alemanha quando menina.

    Forte abraço Glória.

    Aloha

    Hod.

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  7. D. Cosminha ...um ser maravilhoso em sua simplicidade...achei lindooooo.

    bjus no coração Glória

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  8. Glorinha,

    Primeiro fiquei pensando, pelo título, um trio tão irreverente e romântico teria como final.

    Fico cá, ainda, com meus botões, a pensar...

    Depois de ler o "ele corta o primeiro pedaço e diz, é seu Cosminha", um arrepio subito me tomou e filmes da vida me passaram na minha mente... até agora!

    Como esse amor é maravilhoso!

    Mas há mais uma observação, e até da mesma suma importância: a maneira como os jovens tratam nossos idosos, da melhor idade, e o valor exacerbado ao fútil. Geração "coca-cola", a soma de ambos!

    Muito excitante. Adorei ler. Beijos.

    Roberto Ramos

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  9. Um texto para meditar...


    Mas um beijo às vezes
    Faz parar o tempo em seu desvario
    Arranca mil sentires à alma
    Voa no celeste preso em terno fio

    Liberta esta lava incandescente
    Transbordante em teu peito palpitante
    Dá-te as asas de um pássaro azul
    Transforma o eterno em sublime instante


    Bom fim de semana


    Mágico beijo

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  10. Partilhar uma manga plantada - que não é metáfora - mas de verdade é mesmo um grande amor.

    Ainda tenho terras vazias por semear. kilômetros de extensão.
    Mas já nasceu uma árvorezinha, plantada por palavras suas. Isso também é amor.

    Adoro o que escreve.Muito mesmo.
    Muito obrigado pelo carinho

    Beijos
    Rossana

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  11. Que história linda... Muito obrigado pela partilha.

    Um beijo!

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  12. Glória, as tuas árvores florescem, dão frutos, dão sombra...tenha certeza. Beijos

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  13. Ah, que vontade de abraçar a D. Cosminha ;-))

    Quanta delicadeza e sabedoria numa pessoa. Adoro isso, adoro.

    Beijos.

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  14. Nossa, Glória, fiquei muito emocionada com a dona Cosminha e com a tua sensibilidade captando tudo.
    É tão forte a tradução do amor que ela fez. Chorei um bocado, como quem diz: é isso mesmo!
    Assim como ela, o medo que tenho também é de gente que carrega maldade no coração.
    Bj.

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  15. "Fiquei plantada no silêncio. Diante dos meus olhos havia passagem para uma mangueira carregada de lembranças. O que diriam os filmes marcados pelo drama, os romances conturbados, os poemas sôfregos e os capítulos passionais de novelas diante daquela forma de amar mesclada aos ritos do tempo de plantar, colher e dividir ? E eu, teria algo a dizer? Olhei por dentro da minha paisagem amorosa e vi extensões de terras a semear. Eu me perco dentro do meu próprio chão. Haveria algum fruto entornado ao relento? Olhei para ela, que se diz agora minha mãe preta e revelei, com o coração apertado – preciso aprender sobre o tempo Dona Cosminha, água benta capaz de molhar e fazer vicejar uma história de amor. Desde esse dia plantei uma árvore."

    Amei tuas a
    palavras, pois tu reconheces nela aquilo que, por pensares não ter, na verdade já tens. Sabedoria.

    Um ótimo sábado para ti!!!
    Teu amigo Hakim,
    Je t'embrasse

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  16. Não sei nem o q falar, seu texto muito me emocionou menina. Que belo retrado do amor. Que belo sentimento simples.

    Bjos menina.

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  17. Uma vez, procurando uma cachoeira na cidade goiana de São João da Aliança, fiz amizade com o caseiro de uma fazenda.
    Nossos filhos brincaram juntos. Comemos porco do mato, ele esfregou uma espécie de sebo de algum bicho do local na canela doída de meu filho.
    De uma árvore cortada, me mostrou que o cerne era em forma de coração.
    E disse... é assim que a natureza responde aos nossos atos de violência.

    Viva à sabedoria popular!

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  18. Olá Glória. O tempo que me silenciei diante do seu texto, talvez me obrigasse a muitas palavras. Entretanto, o silêncio que agora me alarga os lábios diante deste seu texto, quem sabe não me obrigue a dizer muito. Até porque palavras nunca são chão, por mais que frutifiquem em tantos corações. E ainda que nós, poetas da quietude da rede que se quer intimista, que quer ver os outros mas que em realidade apenas indexa informações, queiramos que essa realidade seja diversa, as coisas dizem exatamente o contrário, sendo que é por isso que meu ceticismo não pára de crescer. Ao ler este seu texto, aliás, ele deu mais um passo em direção ao alargamento de algum membro do meu corpo que desconheço por completo, o qual temo, porém, que seja um pedaço da minha face descolando. E qual a razão disso? A razão é simples: somente a vida pode dizer do amor e as palavras, ainda que acreditemos vivas, não tem pele - só tem voz. Uma folha vale mais que um Pessoa, o que me soa tão Caeeiro que chega a parecer contradição. Um abraço, uma lágrima, vale muito mais que qualquer declaração de paixão, o que me soa tão heideggeriano que me faz parecer nada contundente ao lembrar de Borges nesse exato instante. E o fato de sempre recair em ponteios comuns ao meu discurso, me faz lembrar que antes de ser nessas palavras que aqui faço nascer, sou esse corpo que agora sente dor nos ombros e escreve com o computador no colo e os pés levemente úmidos. Por isso, certamente devo me amar. Se amei, ainda não sei. Certamente jamais saberei, o que talvez me diga de uma insatisfação quase neurótica. Porém, é melhor isso do que repetir sistematicamente as mesmas palavras, como se todo o futuro estivesse em um único caminho. Respiro, portanto, a satisfação de me saber insatisfeito não pelas coisas que não tenho, mas por tudo aquilo que posso perder do que sou. E acho que isso é amor. Obrigado por essa sensação. Um beijo.

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  19. Glória,

    Manga comida assim é benção dos céus... Esse amor tão lindo, que dá na gente vontade de abraçar qualquer ser vivo, até mesmo um grande pé de mangueira...

    Sorte a sua ter ouvido essa lição, e minha por ter te conhecido e podido, por tabela, ter sido abençoada por essas palavras.

    Amém Glória.
    Você é.
    E ponto final.

    Um beijo na alma,

    Solange

    http://eucaliptosnajanela.blogspot.com

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  20. Mas um beijo às vezes
    Faz parar o tempo em seu desvario
    Arranca mil sentires à alma
    Voa no celeste preso em terno fio

    Liberta esta lava incandescente
    Transbordante em teu peito palpitante
    Dá-te as asas de um pássaro azul
    Transforma o eterno em sublime instante



    Bom domingo


    Doce beijo

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  21. Dona Cosminha me deixou com lágrima nos olhos.

    Emocionante, Glória !
    Texto sensível.

    Gratificante meu " encontro" com D. Cosminha num final de domingo modorrento.

    Valeu o dia. Comecei bem a semana.

    Quanta sabedoria nessa " mulher miúda " com " sorriso que se arruma debaixo dos seus braços" ( belo).

    A simplicidade de uma grande lição !

    Escrever é também " compartilhar" experiências.
    Obrigada por dividir essa " manga" com a gente.

    Semana iluminada pra você.
    Beijão

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  22. Ai, Glória!

    Que coisa linda você me escreveu! Você se superou! Muito obrigado!

    Será que sou um mago disfarçado de mim?

    Beijooo.

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  23. Que linda d. Cosminha!!! Nao tem como nao se render a um encanto desse Glorinha,nao tem. Pequena grande sábia!

    Vc sabe o que o amor minha filha?? Eu o tenho no meu jardim...

    linda ela.

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  24. HUm..que sabor...tem escutar esta história e saber destas provas de doce amor que mostram-se sempre entre o tempo e os lugares, sendo propriedade de ambos. Sempre se amou.
    Dona Cosminha abençoa não só pq sabe do poder de sua água, mas tbm por que descobriu o poder de seu olhar e de tudo o que esteve a viver. Como aqueles olhos pulsam.
    Amor com sabor de manga, com olhos no além sertão e pés sentindo a umidade do lugar de abrigo tem tanta cor, que só os olhos de Dona Cosminha podem explicar.

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  25. Este comentário foi removido pelo autor.

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  26. Corrigindo:
    Manga-rosa ambrosia no luxo do palácio da rainha Cosminha.
    Os nordestinos são de pouca fala, muita ação e todo sentimento, contido em cada gesto grandioso.

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  27. Gostei muito do seu blog!
    Muito mesmo! Voltarei.
    Carinhoso abraço!

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  28. D. Cosminha é uma das pessoas mais lindas que conheço, ficar perto dela dar tranquilidade,traz paz. Ela é aquela vovózona que com sua água benta pede a Deus pela nossa saúde e proteção. Ela é doce, calma, esperta,viva e adora conversar, é uma pessoa de cabeça aberta nem aparenta a idade que tem. Ela entende muito bem o mundo em que vive. D. Cosminha a senhora merece essa homenagem feita por essa tão linda e amada mulher.

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  29. É inevitável não ficar com os olhos marejados de lágrimas. Lindo texto!E obrigada por ter 'nos' dado a oportunidade de conhecer uma alma boa, como a D.Cosminha.
    Um abraço!

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Ventanias