Silêncio. Daqui ouço os gemidos de Raquel e o arrastar das correntes. Um prazer em tom de lamento que alteia o som quando se instala o vácuo. Alguns fios podem compor uma forma de narrar história. Raul, mouro da dinastia Almorávida, chega a Península Ibérica trazido pelos ventos da ameaça de reconquista de Al-Andalus. Durante as cruzadas, protegido por seu elmo e armadura, Raul incorpora a alcunha de homem de ferro, o gigante. Não tinha cara, nem sabia do corpo. Restava uma dormência. O guerreiro havia tomado o lugar do homem. Suas mãos reconheciam apenas a superfície fria e sólida do escudo e o fino desenho da lança. Os braços eram talhados para movimentos de força, de gestos largos e firmes. Todos os sentidos do guerreiro se voltavam para uma única direção: o inimigo. Curiosamente, uma vida se conta mais pelos desvios de rota do que pelos itinerários traçados nos mapas. Na batalha de Zalaca, um confronto decisivo, Raul e seus guerreiros derrotam o Rei. Os mouros ocupam o palácio, assassinam seus guardiões e, inusitadamente, encontram no calabouço a princesa Raquel, filha primogênita do Rei. Assim como Raul, ela também vivia uma batalha entre mundos de limites tênues. Raquel havia sido acusada de feitiçaria e de uso de poderes obscuros. Ela detinha o poder de misturar os códigos entre mundos forçosamente cindidos.
Não havia armadura nem elmo capazes de inibir a correnteza que tinha sua nascente no corpo da feiticeira. Ela via para além dos escudos, das paredes grossas do castelo, dos limites do reino, das linhas que pareciam separar céu e terra. Carregava um desassossego povoado por seres de terras diversas e proferia um dialeto intraduzível no léxico local. A presença e o domínio dos mouros tornam-se ameaçadora não apenas devido a extorsão de riquezas e terras, mas pelo temor das crenças inspiradas na magia e em tudo aquilo que não se vê. A princesa vivia no limbo, presa entre dois mundos. Já pelos denominados bárbaros é tida como moira encantada. As lendas dizem que as moiras, donzelas de irresistível beleza e poder de sedução, podem ser confundidas com montes, florestas e rochedos.
É desprovido da proteção de ferro sobre o corpo, de anteparo por sobre os olhos que Raul fita Raquel. Um guerreiro sabe quando é atingido frontalmente. Logo, é tomado por um fogo devastador, que só acende, só ascende. Ele sabe que não mais alcança sua armadura. Rende-se ao corpo. Toma entre as mãos a pele branca da princesa e avança, até alcançar um ponto com desenho de infinito. Penetra a escura caverna. Raquel, a moira, guardiã dos locais de passagem, fonte selvagem da manifestação do sobrenatural ela, fêmea encantada, toma a mão do homem e o conduz ao interior da terra. Entorpecidos, para que nunca se quebre o encanto. Com seu pente de ouro, tocado aos fios longos dos cabelos negros da mulher, Raul quebra a corrente que separa os mundos e permanece.
Oi.
ResponderExcluir"- Quanto tempo! Como sempre sua escrita verte talento. Raquel é uma personagem firme e bela. Não sei porque, mas a imaginei loira, e no final a descobri morena." Nasce o amor, ou a paixão, outra forma de amar. Ótima semana. Abraço.
R.Vinicius
é um testemunho do inefável
ResponderExcluirmuito, muito sugestivo
glória, você bate de frente e forte
"Um guerreiro sabe quando é atingido frontalmente."
agora a gente já não quer que isso acabe nunca.
ResponderExcluircalor aqui. (e olha a palavra de verificação: redole)
beijo, glória.
Aloha Gloria,
ResponderExcluirRaquel quis e conseguiu como Nero incendiar Raul que fará tudo para sentir a candura de seu abraço. Fantásticamente exuberantes.
Glória, amanhã 28.7 vou dar um Upgrade na minha Idade. Vou acrescer mais 1 Terabyte de Pura vida na minha idade. Assim terei combustível suficiente para estar aqui com vc nos próximos 365 dias....
Muitas bençãos amável poetisa,
Aloha!!
HOd.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirRaquel enfeitiçou e encantou Raul com o doce poder do AMOR.
ResponderExcluirLindas figuras de linguagem !
Como sempre Glória, você é a feiticeira das palavras.
Sempre nos envolvendo de maneira "elegante".
Fico feliz que tenha sentido saudade do meu " cantinho".
Estranhei a falta de atualização do seu blog. Imaginei que por uma boa causa. Férias !
Bom retorno !
Ouvi falar sobre Sophie Calle.
Ela também esteve na flip. No caderno Prosa e Verso do Globo fizeram uma matéria com ela .
Você viu a exposição ? Fiquei com inveja, agora. Uma inveja fraterna, claro.
Veja o site falando sobre a exposição.
Pra você que viu a exposição, pode até participar com um trabalho.
Devo falar dela em algum capítulo do blog.
http://www.sophiecalle.com.br/
Beijão e seja bem-vinda !
Não ignorando a sensualidade latende do texto, que nos deixa "enfeitiçados", quero destacar um trecho que é uma preciosidade:
ResponderExcluir"Curiosamente, uma vida se conta mais pelos desvios de rota do que pelos itinerários traçados nos mapas."
É exatamente isso!!!! Você é o cara!
Bem vinda querida.
bjs
Glória!
ResponderExcluirOs amigos são como você, um vento gostoso batendo no rosto da gente!
Um beijãooo! E que saudade da senhorita! :)
Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA
Brilhante texto...
ResponderExcluirDoce beijo
Uia, que texto gostoso! E mais ainda, por ser permeado de fatos históricos.
ResponderExcluir;-)
só consigo me assofrar. sei o que dizer não. tua intuição latente me causa espanto e me faz sorrir, porque eu tenho perto de mim, dentro do coração, uma pessoa como tu, que olha as coisa para aém do que a gente vê. amo tu.
ResponderExcluirahhh como é bom reler vc Glorinha e com um tema encantador desses...
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