sábado, 8 de janeiro de 2011
Longe das horas
Olha o relógio e percebe as horas congeladas nos ponteiros. Estranho, cinco-e-quinze. No fogão, a chaleira deixa um vapor constante. O gato espraiado no tapete dorme imóvel. Uma nevasca se interpõe entre seu olhar e o cenário do quarto. Hesitou. E se aquilo fosse a morte, um congelamento cruel do tempo? Consegue mover-se e examina o corpo. Confirma o que pressentia. Um conluio silencioso barra o escorrer da vida. Dói cada ponto de articulação. Havia permanecido inerte, encaixada em invólucro cerceador de gestos e movimentos. Qual tempo havia parado?
Raquel acaricia os cabelos, desalinhando os fios. Pensa. Embaraça tudo que fica longe das mãos. Curiosamente, incomoda o ouvido esquerdo. Havia uma coisa qualquer impedindo a escuta. Lembrou de uma vez ter lido que os ouvidos não têm pálpebras. Como os seus conseguiram fechar-se à música? Uma cantata de contentamento rompe as cancelas. Vivaldi invade sem pressa a paisagem sonora. Onde se encontrava que havia perdido esse Allegro?
Toca o rosto e imagina enxergar o fantasma de Canterville e os olhos fixos de Wilde. Com apenas uma esfregada essa mancha desaparece? As estórias que lemos vagueiam. Uma porta grande, quase da altura do céu, entreabre. Devia existir um espectro de maldade naquelas visões adiadas, abortadas nos dias do fazer, do correr, do deixar o nome cravado em pilhas de documentos. Tlön, Uqbar, Orbius Tertius, valei-me Borges, dá-me um mundo sem fronteiras.
Coça aqui e acolá. Uma breve dormência no corpo. Havia sangue o suficiente? L’ Amoroso vai pisando sutil em cada poro. Vivaldi, o padre vermelho, acende a música no corpo das amantes. Assim, será. Um aroma de sândalo, o mesmo que havia experimentado na Catedral de Santiago ativa a circulação. A mulher mira os olhos da fera adormecida e ganha velocidade. Para montar sem cela é preciso conhecer o trote do cavalo.
Fome. As horas não passam. Muita, muita é a fome. Comer a paisagem verde da Linha da Serra. Raquel imagina as papoulas vermelhas e cada pétala tingindo a língua. Faz mal? Deixa pra’ lá. Reimoso, essa palavra que não existe, é ter que proferir certezas desacreditadas, feitas para informar e oficiar. Lamber o mel que flui pela boca, deixar escorrer até o lugar do grito, da gruta. Lute in D Minor de Antonio circunda o ato.
Cinco-e-quinze. Raquel olha as mãos. Vê letras adormecidas no dorso. Algumas sequer existiam no alfabeto. Dispersos signos luminescentes. Pescar era tão bom. Cada movimento das águas e as bicadas sutis de peixes de todos os tamanhos acordam a alegria. Seriam assim com as letras? Colocar o chamariz e ter tempo de aguardar a fisgada do peixe. A ilusão da isca leva à morte. O peixe dá vida ao pescador. É essa a alquimia do verbo.
Já não importa as horas. As quatro estações derramam um pó mágico nos cantos da casa. O gato ri. A chaleira exibe o aroma quente do café. E a mulher se levanta. Lá fora, o relógio ainda marca cinco-e-quinze. Nesse amplo lugar de dentro, lá fora pode ser qualquer hora. Não é?
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No encontro lírico abraçam os olhares, na troca de palavras silenciosas cavalgando longe; imóvel sem cela nos rabiscos do ser....
ResponderExcluirCinco e quinze: tempo de fora. Tempo que passa sem eu possa contar. No tempo de dentro, é o tempo que eu quero, a estação que permito e aroma que invento.
ResponderExcluirAs suas palavras silenciam os ponteiros da minha alma... perfeito!!
Beijos linda!!^^
Talvez seja essa a grande magia: não ter pressa.
ResponderExcluirSucumbir nos ponteiros limita os poros, cerceia os sentidos.
Raquel não perdeu nada. Muito menos tempo.
Sempre lindo, sempre profundo e intenso!
Um beijo, bela-dona-das-palavras!
Moni
Um texto que eu chamaria de... "Reimoso". E Tempo e Mistério são as nossas matérias-primas. Ou tias, por que não?
ResponderExcluirBJS!
Ser acordada no meio de uma rotina qualquer por sabores e sons insuspeitos... essa é a vida bem dita por Glória!
ResponderExcluirSanto Deus!
ResponderExcluirNão sei mais adjetivar a emoção substantiva que tuas letras me causam.
És escritora!
Grata por escrever-se-nos.
Beijos
Giselle Zamboni
o melhor do tempo é aquilo que resiste a ele mesmo. cinco-e-quinze é a melhor bora para começar a cavalgar o silêncio...
ResponderExcluirjorge pieiro
Glória,
ResponderExcluirLá fora é sempre qualquer hora... O que vale são as nossas. A gente rasga os calendários e quebra os ponteiros, vive os minutos que não se cantam, não se perdem. Cinco e quinze: tempo de não ter pressa.
Bravo, guria! Belo conto ;)
Beijos
Saboroso de ler. De ouvir por dentro
ResponderExcluirPode e deve ser qq hora...
ResponderExcluirAdorei, Glória!
Querida,
ResponderExcluirTexto belo, belíssimo! O tempo é isto e aquilo, e é nada - ou o resto de tudo que imaginamos.
Creio que Borges, que você citou no texto, teria o mesmo raciocínio da autora; Flaubert, também. Magnífico!
Um beijo,
Ricardo.
"Para montar sem cela é preciso conhecer o trote do cavalo". Para escrever é preciso conhecer o trote das expressões e emoções. Muita luz prá você em sua cavalgada.
ResponderExcluirGlória,
ResponderExcluirFico aguardando ansiosamente teus textos.
Mais uma vez, primoroso!
Beijo fada!
Todas as estórias lidas
ResponderExcluirvagueiam de visões idas
Todos os movimentos das águas
despertam de peixes
Todas as paisagens verdes
tingem de pétalas
Todos os sons de brisas
invadem de alegria
Todas as palavras vindas
acendem de magia
Aqui
um corpo
comendo as horas paradas
sem o espectro dos dias
cavalga de vida o tempo
na sua própria alquimia
Ah, quanta Glória aqui
não importa lá fora
que dia!
Glorinha,
ResponderExcluirMuito bom ler você!! Não conhecia seu blog e agora virei fã!
Parabéns, sua escrita é impecável!
Beijos!!
Texto FANTÁSTICO! sem mais..
ResponderExcluirGlorinha, és sublime na tua escrita arte , nos faz entrar em mundos sem ponteiros, em que pairamos no ar como plumas flutuando, tal a leveza que nos transmite.
beijo carinhoso!
sim!,
ResponderExcluira morte é o congelamento do tempo!
tudo que não flui é morte... quantos são mortos em vida, congelados em certezas, sonhos irrealizáveis e devaneios ocos?
adorei o texto, Glória.
adorei a reflexão a que ele me levou.
um beijo,
Talita
@taprates
História da minha alma
Será que o relógio parou...ou roubaram as horas? O tempo é meu...tiro e ponho horas e nunca nada é igual...Não me oriento pelos ponteiros, dou antes corda ao meu coração. Passou tempo? Não sei...o relógio marca a mesma hora!
ResponderExcluirAdorei o teu texto, belissimo e diferente onde o leitor entra e joga tambem com as horas e o tempo.
Beijos.
Graça
Belo! É como o tempo visto a partir dos ponteiros do relógio: o perfeito movimento imóvel.
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