Deitou acordada. Não há espaço capaz de aquietar o corpo. Calor e ventilador circulam brincando de esquenta-esfria. Alguns acanhados fios de cabelo voam até o nariz. Ela põe a mão na testa e impede que deslizem. Vira-se para o lado. O médico havia dito que gente que tem sopro no coração deve dormir sempre à direita. A sua tia asmática também tem. Quando soube dessa “cardiopatia congênita” tinha apenas dez anos e nem sabia o que significava a palavra cardiopatia e muito menos congênita. Pensou logo num tumor fatal. Foi a mãe que disse - que é isso menina, tua tia Joana tem esse sopro e está inteirinha. Nunca se sabe o que a mãe é capaz de dizer para ver uma filha apaziguada. Restou sempre essa pulga atrás da orelha.
No outro dia na escola, ficava olhando para cada uma das meninas imaginando se algumas delas sofriam do mesmo mal. Apenas com uma freira pálida, e que vivia acometida de soluços incontroláveis, imaginou compartilhar a doença. A primeira vez que procurou um psicanalista, anos depois, soltou a pérola - é que tenho um sopro. Penso que o homem riu na sua particular tela em branco. Por que pensar nisso uma hora dessas da madrugada? O melhor para o coração nem sempre tem o mesmo efeito sobre braços e pernas. Nada bom dormir do lado direito. Para que serve um cotovelo? Molha os lábios com a língua. Ouviu dizer que ventilador ressaca até a alma. Um joelho magrelo, ossudo espeta o outro. Melhor um lençol entre as coxas. Ah não desejo essa hora não. Quantas pernas cabem no entranhado desassossego? Favorece, sempre, beber água. Assim as sedes se apaziguam.
Um fascínio andar no escuro sob a ponta dos pés. Copo na mão, espreita a janela na amplitude de visão do décimo primeiro andar. O edifício é Mariana, mas falta uma letra e fica Mar ana. Que importa? São três horas da manhã. Um homem empurra a bicicleta, vagarosamente, na rua deserta. Terá um amor? Não parece tão só. O meu, essa falta insone. As horas acorrentadas ao relógio movem-se ao contrário; precisodormir-precisodormir-precisodormir. Fazer o que? Apagar os clarões que sopram. A memória encoberta por sete caixas, sete juramentos, sete lágrimas retidas. É verde o olhar do homem que mexe a música com os dedos. Fagulhas da lucidez que devora.
"Deitou acordada. Não há espaço capaz de aquietar o corpo. Calor e ventilador circulam brincando de esquenta-esfria. Alguns acanhados fios de cabelo voam até o nariz. Ela põe a mão na testa e impede que deslizem. Vira-se para o lado".
ResponderExcluirÉ você? Sou eu? São tantas mulheres nessa cama... nessa noite...
Vez em quando encontro-me em pedaços de seus versos. Busco-me, recomponho-me. Alinho os cabelos e sigo em frente.
A vida continua...
Obrigada pela poesia que coloca em nossas vidas!
Cristiane
Gostei muito, compartilhei. Gosto demais desta sua prosa poética, me leva ao longe. Beijo.
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