Era curvo e de olhar
oblíquo. Não havia certidão de
nascimento. Fazia quase dez anos que parou nos oitenta. As mãos carregavam
linhas de gerações em colisão. Na sobrancelha esquerda, a moldura do olhar se
eriçava no contradito. Suas palavras vinham quase sempre escoltadas por um
ponto final.
Uma cigana de passagem
revelou que assim como gato, ele teria sete vidas e completou: sete amores e
sete destinos. Morreu a primeira vez em
alvoroço. Quando soube da morte da mãe, correu léguas. Com três dias de
desaparecimento, teve seu fim decretado no pequeno povoado de Alto Santo. Logo depois, por conta do acaso, foi
encontrado no mato fechado, próximo a oiticicas. Dias sem comer e nem beber água. Restava dele
um fio de uma coisa qualquer que titulam
de existência.
Como de costume, o vaqueiro carregava na
algibeira uma peixeira, um pacote de
tabaco e uma foto desbotada da mãe.
Ficava sem jeito quando a rádio do Vale tocava Evaldo Gouveia na voz de Altemar
Dutra. Pensava, o amor é inimigo do silêncio. A cara da primeira morte ficou
cravada na lembrança. Era pálida e havia uma neblina que vestia a
dor sem definição de cor. A morte despista imagens para que tudo se cale.
O homem viveu falecimentos
de muitas colorações. Enfrentou secas cinzas e de fundas rachaduras na
superfície avermelhada da terra. Fome é uma morte que grita os vãos do corpo.
Houve muitas outras. Na ocasião em que foi derrubado do cavalo e permaneceu por
dias inconsciente, sonhou ser dono de terra e viu capim verde margeando o
riacho de água corrente. Essa morte nem valeu. Ao acordar vivo e são ainda
parecia embalado pela visão do verde e da correnteza cristalina.
A sua última história se
desenha no cadenceio dessas linhas. O vaqueiro soube da vinda da professora ao pequeno
povoado e se achegou. O sol já podia ser avistado por detrás da serra da
Micaela, quando o homem apeou o cavalo. Apresentou-se. Narrou seis vidas. E sem
dizer por qual razão me pediu para que tomasse a caneta e escrevesse aquilo que
seu olhar alcançava. Aqui transcrevo o que vi.
Da vida não se tem escapatória. Disso não sabia. Durei muito
tempo enganando a fulana morte. Tá conseguindo pegar a ideia? Corri de onça, enfrentei o inimigo no bico
da faca, saltei de fogaréu, venci a fome, escapei de marrada de touro, mas nunca
alcancei a palavra bonita que fala de amor. O tempo tá indo embora. Anota ai
essa frase: o amor é uma covardia dos corajosos.
Reparei nos seus olhos
cansados e indaguei: quer levar o que escrevi? Ele me olhou arqueando zangado o
olho esquerdo e disse: não moça é só para
botar num livro ai, o que o velho
vaqueiro descobriu. Pode ser que alguém mais moço ganhe tempo.
Aquele senhor até hoje
me fixa o olhar. Escrevi trêmula seu texto de linhas certeiras. Quantas mortes
atravessaremos até que a vida se instale no limite em que a palavra escorrega?
O que é isso mulher!?
ResponderExcluirBenza Deus!
Obrigada Glória, lindo demais...
Muito bom, Profa. Glória!
ResponderExcluirLembrei de Clarice: "Viver é uma espécie de loucura que a morte faz." In: Um sopro de vida.
Que beleza de texto!!Muito lindo!!
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