Ele dobrou a esquina e, de imediato, a vista turvou. Nada parecia familiar. A cidade que percorria há poucos minutos havia embaralhado imagens, fachadas e o desenho das vias. Pensou que a loucura deve se iniciar, na confusão dos signos; daquilo que se vê diante do que foge à imaginação. Ele andou mais uns cem metros e aprumou o olhar: não havia edifícios, não havia placas indicativas, semáforos. Tudo transcorria em câmara lenta. Homens e mulheres caminhavam como que num acordo íntimo entre o pisar e o ir. Vez por outra, alguém interrompia o trajeto e trocava palavras e acenos. Andar era um ato sinestésico, tátil, generoso. Prescindia sempre de um outro, flutuações de encontros por vir. A paisagem era placa luminosa derramando aquarela. O homem tentou apalpar o lugar em que se movia. Olhou as mãos, ainda tão nitidamente suas. É que um fio invisível interligava velhos, bebês, crianças, gente grande de todas as cores. Viu, esfregando os olhos de incredulidade. Uma mão, embora distante da outra, continha impressões, odores e aperto de dedos. Era como se um corpo iluminasse caminhos desencontrados. Cada um compunha múltiplos arranjos. Podia a cidade ter alcançado a condição de música? De uma polifonia dissonante e sublime? Poderia ter ele atravessado dobras através da vibração de tons desafinados? O homem foi examinando braços, mãos, pelos do corpo, dedo por dedo, fios de cabelo e, a cada toque, inundava-se de uma canção de descoberta. Um impulso nascente, de rasgo de sol no alvorecer, de luz invadindo retinas incidiu sobre cada parte de seu corpo, até então, imerso na escuridão. Ele costumava dizer “eu só sei do perigo quando levo um tiro no peito”. Diante de uma cidade que acaricia, sussurra segredos no ouvido, desliza suavemente a língua, o homem perde a guarda. Acende-se a dor da primeira queda de bicicleta, do costumeiro riso de sua gulodice escancarada, do escárnio diante de seus óculos “fundo de garrafa”, amarrados num barbante gasto e frágil. Ele enxerga. É subitamente tomado por um lampejo de amor-ternura diante de vidas apagadas, adiadas, retesadas num grito eternamente contido. Ele cruza a fronteira dos sentimentos. Entrelaçada à sua mão, dedo bordando dedo, transfigura a imagem dela. Em alto relevo, compondo figura e fundo. Uma elegia do amor.
O amor.
ResponderExcluirSempre fazendo milagres, né?
O amor é revolução.
Amiga Glória
ResponderExcluirMais um excelente texto, que nasce da tua fértil imaginação, ou visão, com se queira chamar.
Apetece gritar, como nos anos 70. Viva o amor livre.
Beijos amiga
Victor Gil
Maravilha de texto, como todos! essa frase é qualquer coisa de qualquer coisa: "Pensou que a loucura deve se iniciar, na confusão dos signos; daquilo que se vê diante do que foge à imaginação." Pura magia. Parabéns, amiga! Um abraço,
ResponderExcluirOi Glória, sinceramente não sou bom em escrever e não tenho muito entendimento em interpretar textos. Gosto da maneira como escreves pois, na riqueza de cada detalhe, viajo em suas histórias. Grande abraço.
ResponderExcluiro amor é evolução! ;)
ResponderExcluiramor é idílio. sempre achei. só vale a pena assim (apesar de a alma imaensa)...
ResponderExcluirlinda a imagem também. dá até vontade de sair na rua procurando o amor... rsrsrs...
um beijo, querida. e amor...
Sabe aquelas coisas desejosas? Pensei como seria um amanhecer desses... Diferente dessa correria mecânica que nos domina. Acordamos, saímos, "ganhamos" o mundo sem refletir sobre ele. Assim, já questiono se realmente o 'ganhamos'...
ResponderExcluirParece ter sido realmente sobre pauta, com notas intensamente sentidas, Glória. O ato de reparar em si, e nos outros, os detalhes, as ligações, cada ponto de contato, parece ter sido a suprema decisão de, enfim, fazer o correto uso dos sentidos.
Uma moldura de seres únicos, diferentes. Mas de igual sensibilidade. Devaneio, sonho ou milagre, não sei. Mas virou vontade...
Lindo, Glória...
Um beijo, minha linda!
Lembrei-me de uma reportagem da mulher que vê música. Seria fantástico se enxergássemos as energias das pessoas.
ResponderExcluirLindo texto a marca registrada da tua canetinha iluminada.
bjs
Rossana
Glória, que lindo!! Vc parece que a cada post se renova, se aprofunda... e essa foto ficou perfeita.
ResponderExcluirAmor é movimento.
ResponderExcluirE tua escrita é perfeita condução que movimenta a alma enquanto o homem segue caminhando em seu chão.
Lindo teu blog e o texto.
Parabéns!
Abraços e bom final de semana.
É tão bom enxergar com os olhos da alma....eles nunca se enganam.
ResponderExcluirLindo texto !
Belo final de semana.
É sempre bom te ler, Glória.
ResponderExcluirBeijos
Olá Glória: Ando desaparecido ultimamente por conta de vários compromissos que tem me surgido. Aliás, por conta disso, resolvi inclusive não postar como antigamente lá no INSUFILME. Percebi uma larga distância entre os textos atuais e os antigos, o que me despertou a necessidade de um maior apuro com a escrita do blog. Antes dele, inclusive, sempre fui assim. Depois dele, talvez por conta do imediatismo da rede, parece que esqueci das dobras do discurso e me centrei apenas na parte lisa da seda. Creio que é fase, quanto mais pelo fato de estar com a cabeça em polvorosa para concluir minha dissertação de mestrado. Mas já que somos historicidade, é necessário respeitar nosso momento nessa historicidade. Quanto ao seu texto, lembrou-me certo ensaio do Borges no qual ele tenta imaginar como seria um mundo feito de som. Sem dimensões, sem paredes ou quadras: apenas sons. Talvez essa realidade já esteja por aqui e se mostre no sentir dos poros que renegamos no fascismo de uma limpeza ideal e supostamente pétrea. Talvez falte essa percepção pulsante, esse dizer por ser impossível dizer, como fala Derrida, pois somente assim a arte e a vida são possíveis. Um grande beijo, Eduardo. P.S.: dê uma olhada no blog SARAPATEL PSICODÉLICO que está linkado no meu blog; o texto intitulado "O Tempo da Vertigem" é genial.
ResponderExcluirAs imagens se encadeiam em um fluxo de água, brisa, qualquer coisa de fluido deslizando por sua cidade. Belo, Glória.
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