sábado, 7 de março de 2009

A deusa, os óculos e o milagre

Ismael Nery

Eu penso que sou milagreira. Nunca entendi a razão dos milagres serem domínios de santos e beatos. E que sigam trilhas de registro: devam ser comprovados, encaminhados ao Vaticano e celebrados como verdade. Quando aconteceu meu primeiro fato extraordinário, tinha apenas sete anos. Nunca tentei convencer ninguém. E precisa? Havia acabado de ganhar uns óculos escuros de plástico e um chapéu de couro. O sertão da Jaguaribe embaçava a minha visão. Via o mundo sob um mormaço avermelhado, recoberto de poeira e luz. O catolicismo era a única forma de invocação divina. Eu sabia que havia nascido da promessa que minha mãe fizera a Iemenjá. Era o nosso segredo. Eu tinha uma dupla filiação materna. Enquanto as meninas do colégio de freiras se ajoelhavam e entoavam cânticos e orações para aquela nossa senhora azulzinha com branca, eu buscava outro ponto de visão. Ia delineando-se fora de qualquer altar um vulto de cabelos desalinhados, pés descalços e ondas de espumas de todas as cores adornando seus movimentos. Paradoxalmente, o mormaço do sertão encobria seu corpo. Algo de quente, de visceral, de luminoso tangia essa presença. Ela cintilava uma despudorada alegria. Não ficava parada que nem a outra, aguardando o anjo do milagre. Assim, me conduzia. Ao fechar os olhos, a deusa me tomava às mãos em direção incerta. Do milagre de nós duas. Houve o primeiro.



Atravessei o silêncio e me detive.



Ouvi o piano de minha avó ir deslizando as quatro estações de Vivaldi. Lá fora tudo era inverno! Ela trazia nas mãos a intenção de assoprar música. Feito gaivota. Ao lado do piano uma mulher dançava sem vestes e sem medo. Era a mãe. Embora, tenha vivido um tormento de nascença, trazia verão. Cada átimo de luz cadenciava sua presença. Ao seu lado, uma menina atravessava o tempo. Falava através dos olhos, pernas, orelhas, língua, sexo e umbigo. Tinha uma primavera desenhada no ventre. Fertilidade de acordes musicais. Que nem fruta madura no outono de outro tempo.

Nunca retornei. Permaneci enlaçada às fêmeas de todas as estações. Feito eros, feito borra, feito ventre, fazendo jus a tudo que é inútil e belo. Elas tomam cada um dos meus dedos e escrevem em letras de fogo. A deusa que me habita é mestiça, um punhado de cada uma e um tanto que nem me pertence. Esse é o meu primeiro milagre. O fundador. Por isso, mesmo profano e mundano não seria ele extraordinário? Acredito. Eu sou quatro estações. E você?

28 comentários:

  1. Gosta de se esconder atrás da porta mas escreve e revela o milagre da escrita. excelente prosa.
    Gostei do blog.
    bom gosto. excelente texto

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  2. Tão bom vir aqui e encontrar a tua fala mansa e lírica, cheia de entrelinhas. Eu amo as entrelinhas pois posso divagar nelas. Teu texto é lindo. Acho que também sou quatro estações...
    Beijo e carinho
    Carpe Diem!!!

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  3. Meus músculos desgrudam dos ossos a partir do momento em que escorro dentre suas frases. Existe um quê de analgésico mesclado com aguardente em cada palavra que a língua muda da tela me traz aos olhos fluorescidos. Porém, não saberia o que dizer da mestiçagem dos seus milagres. Talvez o maior deles tenha sido atravessar o silêncio de agora e encontrar o som daquele antes perdido em algum sonho da infância. A santa do altar e a santa do mar tem uma simetria de água e pedra que dança ao piano de uma avó com cheiro de Vivaldi. E isso eu sinto daqui, meio Brasil de distância, apenas retendo meu fluxo ao fluir das suas pá-lavras. E é só então que tudo se mescla ao sangue que impulsiona o verbo e faz com que você, poeta assumida de Eros, prosaica em suas profecias, quase Nostradamus de si, veja seus olhos assim tão de perto ao ponto de cegar sua face, embaçada como espelho após o banho no inverno. O fato, contudo, é que desconheço sertões e calores como os da sua terra. Sou de um tempo frio onde o campo se alonga até se desprender da própria solidão. Contudo, ao perpassar meus olhos fluorescidos pela suas palavras, meus músculos, como já disse, é que desgrudam dos ossos como analgésico ou aguardente, solitários de si mas perto do que você diz e portanto do que você é. Ou quem sabe seja apenas o efeito de uma flor que desconheço. Ou talvez fruto dessas linhas que ao vento você traça e que até mim, como um hálito de assombro e beleza, chegam assim profanas e sagradas, desprovidas do carimbo cartorário dos milagres confirmados, mas repletas da verdade irrestrita que pelas ruas simplesmente flui - como do corpo flui o sêmen e a menstruação, o suor e a saliva. Se o mundo inexiste, façamos o nosso mundo, pois humana sendo a palavra, humano será o mundo, ainda que jamais saibamos o que isso quer dizer e por isso mesmo escravamos. E esse é um dos mais belos textos seus que já li. Nem sei mais o que dizer: por isso a afirmação acima e meu natural comentário prolixo para cegar minha mudez. Mas foi isso que senti, mais franca que sinceramente, visto que não confio muito no segundo termo. Fica meu beijo e o desejo de um belo final de semana (enquanto prossigo com meu café e espero a chuva cair).

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  4. Escrevi "escravamos" ali em cima, viu? Será que foi por querer ou pela escravidão da palavra? Somos "escritores" ou "escravadores"? Quanta besteira se passa pela minha cabeça sábado há noite, nossa mãe...

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  5. A milagreira que é assim por saber do mar que salva e das sertanias de terra de milagres, balança

    A dádiva da vida, ou milagre, é para os que querem, para os que crêem
    e fé não é de se conter ( adoro achar o incontido);
    fé é tão enorme que é de todos, mas operar milagres é para quem enxerga estrúpicio e se desenrola no vento, pra quem vê cheiro e abotoa amores, pra quem soluça de tristeza achando que é alegria;
    milagorar é para os de agora, os que não gostam de ver as nuvens passarem sem cores,
    provocar a fuga da razão é para quem quase se afogou no mar e enxerga os delírios bons do sertão.
    milagre é para quem sabe de si, ao menos sabe o que não é, e sem querer tanto pertence ao bom Deus.
    Aquele som do piano não sai da minha cabeça, ele fez dançar a mente e embalou a descoberta, vi até alma.

    Que balanço!

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  6. Glória,
    Gostei muito deste texto e dos outros que li no blog.
    Parabéns!
    Beijos

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  7. Gloria menina mulher muito especial. Adoro suas palavras quando me visitas, viu? Vc é por si só uma milagreira. O seu milagre é encantar aos outros com suas belas palavras. Menina mulher que Deus te proteja E que por muito tempo, mas muito tempo mesmo eu possa ter o prazer de ler seus textos.

    Bjos com ternura de quem a admira muito.

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  8. eu tb!!! Glória, obrigada por me seguir! falamos poucas vezes e eu queria ter aparecido por aqui (nos comentários) antes, por que sempre te leio! e gosto mto! de qualquer forma, hj eu vim e deixei registrado! acho que sou como uma típica canceriana mesmo, preciso de confiança e tempo pra baixar as pinças e deixar o novo entrar! ehehe,
    um bjuuu enorme e parabéns pra nós!!!

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  9. Glória, Glória... Leio seus textos e me encontro em cada centímetro de frase sua. Um sentimento à flor da pele. Quando entro no meu blog que vejo um comentário seu, me sinto lesonjeada por uma escritora tão intensa e maravilhosa ler o que eu escrevo.

    Um beijo!

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  10. excelente texto!!!! adorei e vou voltar...
    beijo!

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  11. Que lindo! É por isso então que você é uma deusa! (rsrsrsrs) Agora vejo tudo claramente.

    Obrigado por suas visitas tão repletas de encantamento. E, mais uma vez, parabéns pelo seu dia!

    Um beijãoooo.

    Até breve.

    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  12. Glória!!! Que foi isso???

    Gente como nao te conheci antes?? APAIXONADA estou pelas tuas linhas ao vento :)

    vc tem um talento impressionante pra escrita, to encantada, de verdade.

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  13. Glória,
    como é intensa a luta entre o sagrado x profano.
    Um texto com gosto de sertão. De terra. De gente. A inocência da descoberta do primeiro milagre.
    Sua personagem é mágica.
    Assim como mágico é o seu texto que nos transporta para outro mundo.
    Parabéns !
    Sim, e parabéns atrasdo pelo Dia da Mulher.
    Você, com certeza, é o orgulho da classe.
    Grande escritora. Pessoa generosa.
    Beijos

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  14. Glória: sempre é um prazer ler seus comentários que não estancam o verbo na garganta, ainda que os olhos queiram remelas. Sempre é um prazer ler você lá no meu canto de vidros escuros bem como cá no seu canto de linhas ao vento. E se as palavras nos escorregam sem querer pela mão, multiplicando o significado que talvez nos desse algo pétreo, sólido como pedra de gelo que derrete ao sol, ou como picolé no sol, como disse o Nico Nicolaiewski, quem sabe isso seja a melhor coisa que possamos fazer na escrita que se compare aos acasos e ocasos da vida. Um beijo, milagreira de sempre.

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  15. Às vezes penso que não tenho inspiração alguma, e venho aqui, e me perco, e me acho. E me inspiro.
    Amiga Glória, o texto é grandioso, e você salvou meu dia. rs
    Grande abraço!

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  16. pessoas de diferentes lugares, agradeço a compulsão diária sua primeira visita, a Biba uma vizinha costumeira será sempre bem-vinda com sus palavras que fluem. Eduardo é que nem a montanha-russa que uma vez me deixou sem voz.Márlia é uma maga das palavras. Fred é o poeta/contista que acabei de descobrir e me encantei. Sabrina é uam gaúcha cheio de espirituosidade. Nina é a bordadeira de densas palavras cotidianas. Franze me nutre com palavras férteis. Tainá fala em jorros. Uno seja bem-vindo. Adri me deu essa alegria. Amiga do Cafa transforma o que nàa podia ser em escrituras çheis de graça. Pedro é tào sol da manhà. O Igor é poesia na ponta dos dados. Grata e feliz por vcs. aqui!

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  17. Milagre é quando se vê sentimentos tão bem exarados com tão lúcidas e límpidas palavras. Você é sim uma milagreira de emoções e sentimentos. E dentre tantas as palavras coincidentes, ainda que tenha confirmado que nosso conhecimento mútuo são somente pelas palavras publicadas, é inevitável a dúvida surgida: há, em sua prole (caso haja prole), a primogênita de nome Cristiane? Um abraço forte!!!

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  18. Acredito que milagre é o que fazemos todo dia.

    Milagreiro é o pai ou a mãe de família que ganha um mísero salário e consegue sustentar a família sem perder a doçura no trato com os filhos.

    Você é milagreira, e das boas ;-))

    Beijos.

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  19. Não precisa ser divino... aliás é melhor que não seja.
    Vim agradecer o livro, quando terminar de ler, mando um e-mail ou algo assim.
    bjs

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  20. "eu vou correndo, buscar a glória..."

    as deusas que vivem em mmim, parte-daços de mim são assim desgrenhadas intensas e loucas e insanas. sõ de mar, água-forte e vento. sou puta e santa e doida e toda. assim como vc. que bela des-coberta, hm ;)

    obrigada pela visita. eu re-visito ;) beijos.

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  21. Vocês, mulheres, merecem o melhor da vida!

    Glória!

    Um beijãooo.


    Pedro Antônio - A TORRE MÁGICA - www.atorremagica.blogspot.com

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  22. Mãe que texto lindoo!!
    Toda vez que vejo o seu blog me encanto com suas palavras. Bom te ler! Amo você e admiro a cada dia mais minha princesa. ;**

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  23. agora faço que nem a mari: só me assofro.

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  24. Glória,
    Tem selo (risos) pra você lá no meu blog.
    Beijos.

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  25. Minha pobre mãe, que foi filha de Maria, ainda questiona minha filiação.
    Foi um mago que me disse um dia, que era filha de Iansã.
    O nome já não me importa.
    Maria é universal.
    Mas também sou milagreira. De mar, te terra, água e sal.
    Por vezes perco a mão e me enveredo no deserto do meu sertão interno onde o sol fustiga a noite e o frio acelera o dia. Me perco no fazer e desencontro meu sentir.
    Me encontrei muito aqui.
    Marie

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Ventanias