As correntes contornavam pernas e braços. Uma réstia de luz perfurava o topo da parede e incidia no dorso da mão esquerda. Ali, não havia tempo. Era lua cheia ou apenas um raio de sol cruzava o escuro de uma noite que parecia eterna? Raquel sentou cambaleante e deslizou o olhar sobre o corpo até alcançar os pés. Não fazia calor nem frio. O vestido azul-turquesa aveludado compunha com os olhos um infinito céu de tristeza e ausência. Seus seios pareciam ter escapado do vestido. Sede, muita sede. A vista turva fez girar o lugar. Ela tenta levantar-se e é imediatamente impedida devido ao peso das correntes e a um outro, invisível, que se instala no vácuo das lembranças. Os músculos do corpo de um homem e de uma mulher têm o tônus fortalecido por cada fragmento da memória que permanece. Raquel perdeu os fios narrativos de uma história que precisou ser apagada. Ela se curva e aguarda a entrada do carcereiro. O rangido da porta de madeira sendo arrastada no chão de pedra confunde-se com a voz daquele que a mantém sob vigília. Ela nunca ouvira um som desde o momento em que fora recolhida ao calabouço. Raquel recosta-se na parede esburacada, coberta de limo e recebe comida e água. Em seguida, suspende os olhos com a bacia nas mãos e entorna o líquido. A sede faz escorrer, já a fome não deixa escapar nenhuma migalha. Os olhos do carcereiro seguiram o destino da água e devoraram cada parte descoberta do corpo de Raquel. Ele tinha cílios fartos, caindo por sobre olhos cansados de atravessar abismos de mãos vazias. Uma mulher sabe quando um homem permanece deserto. Ela arrastou-se, segurou cada uma das pernas do carcereiro e se recostou. Os cabelos longos de Raquel vestiram seu rosto e penderam aos pés do homem. Ele se acocorou, tomou-a entre as mãos, afastou os cabelos da mulher e passou a língua em cada gota de água que permanecia em seu queixo, por sobre o pescoço e por entre os seios. Raquel deitou seus olhos de cor amarela, imprecisos como fachos de luz em flecha veloz. O homem sentiu correntes de calor enredar braços e pernas, enlaçar pontos de cruzamento entre vigília e vontade. A chave perdeu-se do lugar-passagem. Não havia saída. Estavam presos.
Olá Glória.
ResponderExcluirFaz tempo que não passo por aqui. Não porque ande esquecido, mas porque por vezes não dá.
Este conto é maravilhoso. Você descreve cada passo da narrativa com uma sensibilidade, uma delicadeza e sensualidade, que cativam a leitura a cada palavra. Deveras interessante. Quero ler a parte dois.
Beijos
victor Gil
vale a pena cada dia que eu espero por tuas linhas, minha glória-amada. esse teu texto é um misto de tristeza e desejo. tudo lindo e denso, cheio de corpo. te amo.
ResponderExcluirtava cum sardade, quirida :)
ResponderExcluira começar pela escultura, e da escultora, que amo já seria um tudo. mas não poderia faltar palavras (mo)vidas, hm.
e que desfecho. beijo.
ui ui
ResponderExcluirque texto!
Ui!!
:)
imagino a parte dois, Deus do céu!
Ave Glória!
ResponderExcluirTexto de inexprimível beleza e sensualidade.
Que venham muitos mais.
Beijos afetuosos
Rossana
E o que fazer
ResponderExcluirQuando não estão mais nem aí para você?
Quando seu mundo não passa de uma prisão?
Libertar das correntes da solidão...
Glória, quanta intensidade!
ResponderExcluirTuas palavras envolvem, seduzem e causam arrebatamentos.
Um mundo inteiro coube nas tuas linhas.
Fiquei sem ar, coração acelerou.
Te adoro.
Glória antes de tudo obrigada pela conversa boa de "cumadi". Adoro! Sinta-se sempre a vontade.
ResponderExcluirFoi bom "ouvir você", nessas trocas vou refletindo, avaliando, me observando e aprendendo. Gostei mesmo.
beijão
Elogiar sua escrita, sua narrativa, é me repetir.
ResponderExcluirGostei sobre a memória ficar nos músculos. O vivemos deixam marcas no corpo, enrijece muitos músculos.
beijo
Que texto intenso! Busca por liberdade. Quero ver a 2ª parte! :)
ResponderExcluirbjo, Glória!
Êita, êita!!! Que conto mais gostoso (em ambos sentidos). Heheheheh.
ResponderExcluirNem vou perguntar onde você busca inspiração para escrevê-los. Risos.
Beijos.
Olá Glória.
ResponderExcluirRealmente, cada fragmento da memória habita nosso corpo. Se as árvores, dizem, trazem consigo tatuagens aneladas dos anos de suas vidas, nós trazemos em nossa pele o cheiro de tantas pessoas, de tantas coisas, de tantos lugares pelos quais passamos. Essa memória, entretanto, pode nos fazer prisioneiros do próprio sentimento que sentimos ao lembrar. E quem dirá que a lembrança não é mais viva na saudade ou na própria sede que a saudade cessa em um abraço dado em qualquer rodoviária quando tínhamos dezesseis anos? Por isso mesmo o lugar comum do coração é a ânsia. Longe dela não há desejo e nem lembrança ou saudade que abraços saciam.
Mas esse saciar sempre será pouco, sempre será negativo para nós, aqueles que amam, que irão querer mais e mais até que a vida nos cresça pelas entranhas e nos faça meros bonecos de arame pendurados pelos fios do desejo. Porém, não conseguimos viver longe desse desejo: ele está no vinho de Farroupilha, ele está no bolo que uma tia distante fez no fogão à lenha, ele está na pele que o sexo afaga por alguns minutos para trazer o sono com gosto de menta de uma tarde de junho.
E se o inverno começou, é porque outros invernos existiram. E se as estações irão seguir uma após a outra, é porque esse é o ciclo das coisas mesmo que nossa insistente premissa da evolução queira mudar a natureza ao deus dará das conveniências mesquinhas.
Permanecerá, contudo, resistente a tudo isso, a memória de cada músculo, de cada unha, de cada lábio, de cada amanhecer e anoitecer que passamos ao lado daqueles que amamos ou mesmo ao lado de uma preocupação que sabíamos que iria nos trazer frutos no futuro, mas da qual queríamos nos livrar incessantemente.
Permanecerá Raquel, prisioneira de uma toca de limo e pedra, escorrendo os cabelos feito veias, feito rios, pelo rosto do carcereiro, fazendo com que as correntes se confundissem com os fios e que nem ele e nem ela percebessem aquilo que lá no alto pulsava e controlava todas as suas ações com finos arames cravados em cada um dos seus membros. E o que pulsava? E o que os controlava? Não é à toa que os feixes de luz pareciam flechas, como que travestidos de cupidos esquecidos de si porque esquizofrênicos pela erva-daninha da paixão – por essa necessária falta de referencial que a paixão traja. E por este motivo que no alto de tudo, bem lá em cima (e bem aqui dentro), estará tão-somente o coração: o coração que corta a mesquinhez, o coração que afaga, que agride, que é, que nos faz ser o que somos mesmo que jamais saibamos quem somos distantes da própria paixão, da ânsia, da memória, da lembrança, da saudade e da realidade da pele e do sexo (essa fome de infinito que, por traquinagem de um deus criança, habita a escassez da nossa vida).
Como sempre, minha poeta, tocaste minha sensibilidade não com dobras de palavras, mas com dobras de vida, porque suas palavras são o próprio vestido azulado que a vida joga por sobre seu corpo de vento – e mais: de linhas ao vento de uma Raquel feita apenas de pulsares incessantes daquilo tudo que sente e é na própria escrita.
Um beijo grande.
O amor comparado a uma prisão cheia de angústia, dúvidas e conflitos.
ResponderExcluirAmor que incendeia. Que causa vazio e escravidão.
Amor tão bem retratado pela sua escrita erótica e sensual.
O amor é , como dizia Camóes" Nunca contentar-se de contente...."
Aguardando a próxima parte.
Boa semana !
Presos no amor que consolida o sentimento. A vontade no calor do momento. Ficarei no aguardo da parte II... Saudades!
ResponderExcluirGlória:
ResponderExcluirBorges tenía razón en relación a las vidas paralelas que vivimos. Con seguridad, debemos haber convivido bastante en alguna de nuestras otras vidas paralelas, hay muchas coincidencias.
Tu blog me sorprendió.
En realidad voce me sorprende.
Estoy trabajando bastante fuertemente la cuestión de los derechos humanos con la secretaría de derechos humanos del Ministerio de Justicia de la Argentina. Tenemos previsto un congreso de derechos humanos del Mercosur y la formación de una escuela de formación de educadores en derechos humanos. Creo que podemos y debemos hacer cosas juntos.
Yo tengo lazos muy fuertes con fortaleza. No solo con Ana Paula de Holanda de la UNIFOR sino con Valeska con la cual tengo también afinidades sorprendentes, como si hubiesemos vivido mucho tiempo juntos. Con Valeska es raro porque tenemos sensibilidades que uno muchas veces no consigue tener ni siquiera con las enamoradas más sensibles. Que cosa extraña no?
Un beso.
legal
ResponderExcluirOlá Glória, a sensação da leitura do que escreveu; apesar de me sentir sufocado; é dúbio, pois a leitura flui com prazer, estarei esperando pela segunda parte.
ResponderExcluirAbraços
Marco
Ótimo.
ResponderExcluirEspero agora a segunda parte.
Bom fim de semana.
Beijos
Uma metáfora não se faz sem emoção. Para assim ser lida há de ter final de angústia, que insere os amantes desconhecidos num pouco largo e umidecido quarto de retenção de vida. Mas pode ter uma leitura mais inacabada e assim desadensada...nada acaba com o fim. Finalizar é de alguma forma eternizar..
ResponderExcluiristo tudo me lembra das densidades que vejo passar...que se vão mas permanecem num outro tempo- de uma forma mais justa e bela,junta as bos memórias.
Raquel e o carcereiro, todos sabemos, de alguma forma se libertarão. Eles terão encontros diversos antes de saberem-se libertos..e eu não sei o que mais...
ando por porões como este, a fim de enxergar o obtuso,
mas eles podem trazer de um tudo, além de lodo, amarras...
trazem desejo de todas as ordens, fantasmas, o que não se consegue dizer, tbm mora ali;
eles trazem tbm aquilo que temos de amor e, como tudo que contém o que permanece vivo, eles comportam a magia que faz a vida manter-se.
Sinto-me sufocada quando penso no momento que eles se darão conta da prisão que os cerca..isso me lembra outras formas de sufoco, e de amarras, e de descobrir-se preso, e o medo que isso dá depois de se viver,
e de como é bom trilhar o caminhos destes dias que sempre serão de deliciosas descobertas rodeadas de medos(tomara que sempre quietos)
..que metáfora Glória!
(saudades destas 'linhas', qro elas sempre passando ante meus olhos)
beijo bem muito saudoso. E aguarde...tô de várias voltas :P
Que aprisionamento mais desejo e ânsia...
ResponderExcluirGlorinha,
ResponderExcluirQue intenso esse conto! Na vastidão do corpo os sentidos ecoam fazendo calar as palavras e pronuncia a linguagem do desejo. No mundo de tuas palavras vejo mais além. Adorei visitar o teu blog hoje.
Lidia Valesca
que texto maravilhoso...
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