Eu aprendi a cavar com as mãos as dobras do silêncio. As coisas ditas podem receber camadas e mais camadas de esquecimento ou de recusa. Ele cruzou a passagem secreta, logo no primeiro dia. Eu sempre preferi ficar nas últimas cadeiras da fila. Passar despercebida em sala era uma forma de deixar espaço para o devaneio. O professor de literatura era tão magrinho que as pernas davam voltas ao se cruzarem debaixo do birô. Isso acentuava o tamanho de seus olhos e o mover-se rápido das retinas. Foi assim que senti a pegada do seu olhar alcançar uma impenetrável zona de reserva. A aula era sobre “Dom Casmurro” e todo o afã de Rosilmar era o de tentar descrever o que denominava da personalidade felina de Capitu. O nome dele era esse mesmo: Rosilmar. Fiquei ensaiando indagar – professor esse achado se deve a uma junção do nome do pai e da mãe ou do mar e da rosa? Naquele momento, nos mudos anos setenta, perguntar podia entreabrir zonas de risco. Como já falei, a penúltima cadeira era um refúgio seguro e mudo. Ele chegou, fez a chamada e não sentou nenhum segundo a mais. Movia-se percorrendo filas de carteiras ocupadas pelas tantas meninas-virando-moça. A ordem era despistar das freiras austeras a malícia que, sorrateiramente, teimava em deslizar. Todas as manhãs, as bainhas das saias eram observadas durante o cântico bocejado do “Alô, bom dia, oh como vai você”. Esconder era o modo possível de carregar o proibido. Os olhos verdes e famintos do professor arrastavam-se de carteira em carteira. Enquanto isso, ele lia, em voz alta, trechos diversos que diziam dos mistérios de Capitu. Falava de mulher da forma que eu apenas acabara de pressentir. Pedi a Deus para que ele não me alcançasse. Foi quando, repentinamente, Rosilmar mudou a cadência dos passos e parou ao meu lado. Foram segundos de uma perplexidade mútua com sopros de eternidade. Ele me apontou e falou para a sala em tom de confidência violada, ela aqui carrega o mesmo matiz, o mesmo abismo dos “olhos de ressaca” de Capitu. Eu poderia muito bem ter baixado ou desviado os olhos; poderia ter poupado o homem daquele vexame. Ele desconhecia. Minha tradição é do cangaço, dos duelos de sangue, do galope veloz do cavalo nas veredas. Fui tangendo a vista na direção do professor, lenta e certeira. Tomei o cabresto entre as mãos e disse: os seus trazem maresia e perfume de rosas. O abismo se move sob os pés. Eu aprendi a cavar o mistério.
p.s- minhas ausência de aqui estar, de ler e percorrer todos os escritos que me alumiam, saibam, são atravessadas por muitas, muitas razões. voltarei!
uma volta em grabnde estilo, mulher :)
ResponderExcluireu uma vez me apaixonei por uma professora de matemática. e lhe fiz um poema que sem jeito e trêmulas mãos lhe entreguei. que fisaco.. rsrsrs.. hoje tenho alunos, e alunas, apaixonados.. rs. que loucura isso.
soube de boas notícias pra vc. parabéns e volte logo. beijo :)
Que bonito! Também procurava a segurança do cantinho, penúltima cadeira...Continuemos por aí, cavando mistérios!
ResponderExcluirbjo, Glória.
eu me sentava sempre no cantinho esquerdo da sala,encostada na parede, numa das últimas filas. teu texto tá lindo,muito lindo! estava sentindo sua falta por estas paragens!!! um beijo beeeem grandão
ResponderExcluirValeu a pena a espera.
ResponderExcluir"Tua tradição é do cangaço, dos duelos de sangue, do galope veloz do cavalo nas veredas."
Arriba montar de novo o teu Pégaso para nos encantar.
bjs
Rossana
Uau! Cabe no Uau, a intensidade e densidade com a qual li o texto. Um texto de linhas muito bem conduzidas, pelas mãos talentosas da escritora. E coube o mistério, há uma continuação? Volte em breve. Também tornei.
ResponderExcluirAbraço,
R.Vinicius
Tava com muita saudade de um texto seu. Adoooooooooooreeeeeeeeei!! Coitado do professor, hehe. E, bonito também, a força de ter voz para falar assim do outro.
ResponderExcluirBeijo grande,
Carpe Diem!!
Olá, linda Glória!
ResponderExcluirO acaso é um mistério ou uma fantasia criada por nós! Quem sabe!?...
Sobre o olhar... ah, o olhar! Ele diz tudo!
Texto maravilhoso, como sempre!
Um beijãooooooooo!!
Pedro Antônio
Que texto lindo..olhos de ressaca num cantinho de sala....
ResponderExcluirMais um belo texto!
ResponderExcluirEstava sentindo falta dos teus comentários, Glória. Que bom que voltou.
Grande abraço!
Escrever é escolher palavras. Selecioná-las. Usá-las. Você as escolhe muito bem. Cava com as mãos.
ResponderExcluirTem tradição de cangaço. Literatura. Palavra.
Bebi seu texto. Falar de Literatura, Capitu e Dom Casmurro é sempre uma união perfeita.
Coitado do professor de literatura.
Volte quando puder.
Adoro seus comentários e amo seus textos.
Mas a vida sempre nos chama....
Grande semana !
Ahh Glória, adoro qd vc fala assim, das tuas lembrancas... que legal essas, da sala de aula, da escola de freiras, de literatura. Menina e já poeta!
ResponderExcluirUau!Olhos de Capitu!
Também tive um professor de literatura assim, magrinho e que nao parava quieto, apaixonado que era pelas letras...
Lembrei enquanto te lia, da minha mae, qd ia pra escola (internato) de freiras e aprontava o tempo inteiro que ficava lá, pulava as janelas, sumia, ia jogar bolinhas de gude com os meninos na rua, aparecia no outro dia com a vovó a puxando pela orelha... e lá ia mamãe moleca, ficar de castigo, bordando longas toalhas de mesa... rsrs
Um beijo querida poeta!
Olá Glória; aqui cheguei através do blog da Berenice, e muito me encantei com suas páginas; passo a acompanhá-la com a alegria do belo descobrir, acredito que podemos nos tornar amigos virtuais; portanto, deixo aqui o convite para que venha me fazer uma visita.
ResponderExcluirUm singelo presente de um homem nunca ausente: Ferreira Gullar.
Um instante
Aqui me tenho
Como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente
Abraços
Marco
Capitu é uma personagem impar... uma das que mais me encanta!
ResponderExcluir=)
BeijOs
Olá Glória!
ResponderExcluirTeus textos hein? Na última letra os olhos insistem em continuar se arrastando, não querem se libertar... E a penúltima cadeira sempre é a mais confortável em todos os seus múltiplos sentidos...
Abraços,
ariel
Olá Poetisa!!!
ResponderExcluir"...Eu aprendi a cavar o mistério." A matéria prima que nos oferece... suas memórias.. alinho-as às minhas....
Para conhecer a verdade, primeiro "cavei" sobre o que era falso..e a meias verdades apareceram....
Bjjs!
Hod
Mil caminhos
ResponderExcluirEsta viagem sem velas nem vento
Este barco na bolina das ondas
Esta chuva miúda transborda sentimento
Amarras prendem o gesto
Arrocham um coração que bate incerto
Uma gaivota retoca as penas com espuma
Levanta voo em rumo concreto
Partilha comigo “100 Anos de Ilusão”
Mágico beijo
Estava com saudade das linhas que me levam longe, em cidades imaginárias, onde inevitavelmente me encontro.
ResponderExcluirAguardo sua volta, nos presenteando com belos contos.
ResponderExcluirVocê vai narrando e me capturando. Podia ouvir os passos do professor, o frio na barriga, as mãos suando...é bom ler, ver, sentir. Muito bom!
Ah, me fez voltar aos meus cinco anos com a música do bom dia, sempre lembro dela, as vezes me pego cantando quando venho para o trabalho.
“Alô, bom dia, oh como vai você”. Um olhar bem amigo, um claro sorriso, um aperto de mão....(é assim?)...é bom fazer feliz o nosso irmão...
beijos
Glória, tipo de texto que faz minha imaginação viajar...
ResponderExcluirbjs
berê
oi, glória!
ResponderExcluirdos personagens... bem, eu sou prof. de port. e lit. mas, ó, seu texto continua num primor só.
e o olhor do rosilmar... eita!
parabéns!
- pimenta
Imaginei que encontraria boa literatura aqui.Também voltarei.
ResponderExcluirOlá Glória. Nunca entendi a razão dessa discussão sem fim sobre a Capitu do Machado de Assis. Para mim, mais parece verborragia academicista do que qualquer outra coisa. Entranto, quando os adjetivos da arte saem da obra e se tornam adjetivos dos corpos, tudo muda de figura. Se o professor transitava entre as classes vez ou outra olhando os joelhos das alunas, isso quer dizer que o próprio ciúme, ainda que travestido em desejo, de Bentinho, restava inerte em fogo nos olhos esquálidos do professor. Fosse o contrário, você não diria que ele tem olhos de “maresia e perfume de flores”. Acontecendo isso, a arte, seja escrita, falada, cantada, pintada, ganha a sua verdade força, que é a força social. Isso pode implicar em uma conjuntura romântica da minha parte, mas se um livro (a Bíblia) é que guia boa parte da humanidade até hoje, como duvidar do poder da literatura? Creio que corpos escassos e mirrados inflados de palavras que realmente dizem algo, valem mais do que quaisquer viagens beats sabe-se lá por quais paragens. Assim, trazer adjetivos do Machado de Assis correlatos aos seus adjetivos de mulher-moça nos idos de 1970 (década na qual eu nem projeto de gente era), remete-me novamente a minha (ilusão?) romântica de que a arte pode transformar o mundo, seja por meio de uma conquista, seja por meio de um discurso político ou até da construção de Brasília. Sendo assim, a poesia/política, aqui adentrando em outra senda que julgo estar entranhada no seu discurso, é o que nos fazer eleger um ou outro candidato assim como ter relacionamento com uma ou outra pessoa. E ainda que não interesse se a Capitu traiu ou não o Bentinho, o que resta é a plena e total desconfiaça de que qualquer certeza, ainda mais nos tempos em que vivemos, pode ruir de uma hora para outra. E qual a única coisa que não desaba nesses tempos? A criação, a arte e a transfusão do mundo artístico para o mundo real, sendo que é dela que nós, dia após dia, trazendo conosco a revolta e o absurdo camusianos, flertamos com o mundo sem jamais saber o que o mundo é, pois se a linguagem é um mundo a parte que diz o que é o mundo, é do nosso corpo, da nossa língua e da nossa história que somos feitos, tanto para compreender Capitu quanto para compreender a razão de estar aqui. Um beijo.
ResponderExcluirÇok güzel site. :)
ResponderExcluirCapitu, captar, cooptar, capturar, capitular...
ResponderExcluirtexto Glorificado.
Beijo.
Uauu
ResponderExcluirPor hoje tenho a dizer apenas.. UAU
Olá Glória!
ResponderExcluirA um tempo você esteve em meu blog e vi que é minha seguidora, então decidi fazer uma visita e ver todo este belo conteúdo. E que texto! Muito interessante. Nada enfadonho. Cheio de ritmo e mistério. Nunca fui fã de sentar lá no fundão, porque sempre gostei de ser muito participativa, mas tem horas que é bom passar despercebida e não ser tão previsível. Assim foi você neste dia com seu professor. Parabéns em todos os sentidos. Excelente texto.
Aguardo seu retorno lá na *Bela.
Abraço,
Vanessa.
Oi Glória...
ResponderExcluirJá te vi tantas vezes por aí... E até já nos cumprimentamos em sorrisos de simpatia...rs
Mas há tempos a Tatiana (lá da Coordenadoria da Mulher) me dizia: - Moni, lê a Glória, tu precisa ler a Glória!
Nem sei porque demorei tanto, pura desatenção.
Agora há pouco estávamos a conversar sobre os devaneios de publicar, de sentir as palavas que a gente escreve materializadas naquele cheiro de livro novo... Aí abrimos o seu blog e começamos a ler. A Tati já vai feito flecha naquelas postagens infalíveis, aquelas que ela tinha certeza que me fariam vidrar o olhar aqui.
Mas além de achar tudo encantador, bem escrito e diria até "tátil", percebi uma identidade, uma vontade de ter escrito algumas coisas, outras que até povoam alguns textos meus, ora de forma idêntica, como essa segurança da "ultima fila", ora de forma oposta, como li em outro post, sobre o medo de altura, que em mim é desejo do salto.
Enfim... Adorei tudo, os textos me inspiram, sugerem motes,acendem idéias (e até alguns comentários também)e este lugar passa a ser parada obrigatória.
Peço licença pra colocar um link no meu... Acho que mais gente merece se alimentar de palavra substanciosa...rs
Um beijo e ótimo fim de semana!