Criolina e Buiú: encontros proscritos (um)
Retomo a cena inaugural: um vento desloca as vestes que supostamente recobrem os corpos. A câmera foca o vestido envelope da mulher aberto ao vento, adentra o carro e sem esboçar nenhum movimento capta a nudez recoberta do homem.
(Buiú, um delirante morador de rua, fez do corpo um guarda-roupa. Dobraduras de vestes de todos os tipos empilham-se. Não se sabe quantas calças, camisas e bugigangas tranca sobre si. Carrega tudo o que possui ao mesmo tempo e acredita, desse modo, protegê-las, conservá-las. Ninguém até hoje sabe dizer quem esconde o que, se as roupas cobrem o corpo ou se o próprio corpo envolve os pertences. Um dia me falou do seu cansaço, do seu frio-vestido, de um peso que carrega dia após dia, movido pela idéia de tornar o corpo cofre de tudo que possui. Sabia Glória que isso pesa? “Melhor ser vagabundo, que nem tem nada, que num tá nem vendo” me dizia o homem guarda-roupa. E assim, banho era aqui, acolá, poder se ver era quase nunca e ficava nessas dobraduras de panos protegidos, ausente de si.)
(Ela era chamada Criolina, andava cheia de latas e nesse baticum anunciava de longe sua presença. Quando o alarido soava alto, amontoava-se em torno dela um punhado de olhares. Era então chegada a hora: ela levantava a saia e se mostrava como veio ao mundo. A rua ficava em rebuliço: que pouca vergonha! Tudo que se dava a ela como calçados, vestidos, calçinhas e até absorventes era lançado ao chão, propositalmente. O sangue escorria por todos os cantos, mês a mês. Ficava o vermelho desenhado nos lugares onde dormia. Ria muito, cantava alto e dançava rodopiando em música. Por vezes, era tomada de um choro-rasgo, em golfadas de sentimentos de volume alto, falados em dialeto mesclado de bicho e gente. Nua e demente. Criolina seguia, inundada de si.)
Em um dia especialmente nítido, encontraram-se. Criolina logo que olhou o homem guarda-roupa, pode ver para além das dobras, cascas, folhas, tecidos de todos os matizes e texturas que o envolvem. O seu olhar o alcançou “antes de (dele) se especular”, e de vestir-se em vigília. Na condição de nua, esparramada e intensa, ela tomou a mão dele e percebeu seu desassossego, o seu temor de, mais uma vez, confirmar a ausência daquilo “que se travou feito pedra”. E seus olhos derramaram mel e ternura. Se já havia perdido tudo, por ter sabido desde sempre que sua condição é de nudez, de nada reter, de se esvair mundo afora Criolina poderia sim tomar a mão do homem. Poderia também, ao seu lado, fazer ressoar o alarido das latas e vestir-se de suas costumeiras vestes: a nudez.
Assim o fez. E ficaram os dois, sentados e circundados por um vácuo que se impõe feito trava e inusitadamente feito verbo que se apossa. Um vácuo cheinho de pulsação revestido de uma matéria de “silêncio que fala por tudo que não consegue dizer e entender”. Ela, por sua vez, “serelepe e vasta”, desajeitada e esparramada, pressente sua suposta ausência. “Talvez nada desperte” ou talvez seja essa a forma sua de despertar e de se desnudar. E segue, junto a ele. Criolina, movida de doçura cheia de vida vivida, o recebeu e disse: vamos parar tudo. Tudo, tudo, tudo e deixar o vento nos guiar.
Encontramo-nos: você tão absurdamente nu e guardado e eu tão escancaradamente nua e perplexa. Encontramo-nos e não interessa o que nos aguarda e o que faremos desse prelúdio. De quantos silêncios atravessarão nossa polifonia solitária, lírica e, por vezes, atravessada por ecos do nada. Puta que pariu dez vezes! Isso é fértil, me faz sentar e escrever em pé, banhada por eros, que tudo inunda e conduz.
Fim do encanto. De volta ao quebranto. Ela o surpreende no peso, assolado por uma aguda sensação de vacuidade, perplexidade, e antevê os seus olhos desorbitados. A mulher, finalmente o enxerga inteiramente nu e alcança o que só uma criatura como ela e outros seres raros saberão. Um dito desnudado, uma fala que transita crua e límpida, um afeto teso e tenso, uma amizade povoada de tantas coisas mais.
Criolina e o homem guarda roupa se viram e se sabem, o resto da história apenas os loucos, que nem eles, serão capazes de antever. Podem nunca mais se tocar, podem seguir bêbados, solitários e nus, vida afora. Mas, tem algo que o tempo não apaga e nem ela deixaria. Então, ela retoma a palavra que transborda.
Olhar para essas pedras como parte de você meu amor tomá-las uma a uma e ora brincar de cinco pedrinhas, ora jogá-las para longe e, quando preciso for compor um silêncio: eu, você, as travas, trancas, pedras, com encanto e/ou quebranto. Não importa eu sendo eu, solto teu cabelo e te dou a mão. Infinitos, como novelos esticados, tesos, finos, brancos e cheios de graça.
Retomo a cena inaugural: um vento desloca as vestes que supostamente recobrem os corpos. A câmera foca o vestido envelope da mulher aberto ao vento, adentra o carro e sem esboçar nenhum movimento capta a nudez recoberta do homem.
(Buiú, um delirante morador de rua, fez do corpo um guarda-roupa. Dobraduras de vestes de todos os tipos empilham-se. Não se sabe quantas calças, camisas e bugigangas tranca sobre si. Carrega tudo o que possui ao mesmo tempo e acredita, desse modo, protegê-las, conservá-las. Ninguém até hoje sabe dizer quem esconde o que, se as roupas cobrem o corpo ou se o próprio corpo envolve os pertences. Um dia me falou do seu cansaço, do seu frio-vestido, de um peso que carrega dia após dia, movido pela idéia de tornar o corpo cofre de tudo que possui. Sabia Glória que isso pesa? “Melhor ser vagabundo, que nem tem nada, que num tá nem vendo” me dizia o homem guarda-roupa. E assim, banho era aqui, acolá, poder se ver era quase nunca e ficava nessas dobraduras de panos protegidos, ausente de si.)
(Ela era chamada Criolina, andava cheia de latas e nesse baticum anunciava de longe sua presença. Quando o alarido soava alto, amontoava-se em torno dela um punhado de olhares. Era então chegada a hora: ela levantava a saia e se mostrava como veio ao mundo. A rua ficava em rebuliço: que pouca vergonha! Tudo que se dava a ela como calçados, vestidos, calçinhas e até absorventes era lançado ao chão, propositalmente. O sangue escorria por todos os cantos, mês a mês. Ficava o vermelho desenhado nos lugares onde dormia. Ria muito, cantava alto e dançava rodopiando em música. Por vezes, era tomada de um choro-rasgo, em golfadas de sentimentos de volume alto, falados em dialeto mesclado de bicho e gente. Nua e demente. Criolina seguia, inundada de si.)
Em um dia especialmente nítido, encontraram-se. Criolina logo que olhou o homem guarda-roupa, pode ver para além das dobras, cascas, folhas, tecidos de todos os matizes e texturas que o envolvem. O seu olhar o alcançou “antes de (dele) se especular”, e de vestir-se em vigília. Na condição de nua, esparramada e intensa, ela tomou a mão dele e percebeu seu desassossego, o seu temor de, mais uma vez, confirmar a ausência daquilo “que se travou feito pedra”. E seus olhos derramaram mel e ternura. Se já havia perdido tudo, por ter sabido desde sempre que sua condição é de nudez, de nada reter, de se esvair mundo afora Criolina poderia sim tomar a mão do homem. Poderia também, ao seu lado, fazer ressoar o alarido das latas e vestir-se de suas costumeiras vestes: a nudez.
Assim o fez. E ficaram os dois, sentados e circundados por um vácuo que se impõe feito trava e inusitadamente feito verbo que se apossa. Um vácuo cheinho de pulsação revestido de uma matéria de “silêncio que fala por tudo que não consegue dizer e entender”. Ela, por sua vez, “serelepe e vasta”, desajeitada e esparramada, pressente sua suposta ausência. “Talvez nada desperte” ou talvez seja essa a forma sua de despertar e de se desnudar. E segue, junto a ele. Criolina, movida de doçura cheia de vida vivida, o recebeu e disse: vamos parar tudo. Tudo, tudo, tudo e deixar o vento nos guiar.
Encontramo-nos: você tão absurdamente nu e guardado e eu tão escancaradamente nua e perplexa. Encontramo-nos e não interessa o que nos aguarda e o que faremos desse prelúdio. De quantos silêncios atravessarão nossa polifonia solitária, lírica e, por vezes, atravessada por ecos do nada. Puta que pariu dez vezes! Isso é fértil, me faz sentar e escrever em pé, banhada por eros, que tudo inunda e conduz.
Fim do encanto. De volta ao quebranto. Ela o surpreende no peso, assolado por uma aguda sensação de vacuidade, perplexidade, e antevê os seus olhos desorbitados. A mulher, finalmente o enxerga inteiramente nu e alcança o que só uma criatura como ela e outros seres raros saberão. Um dito desnudado, uma fala que transita crua e límpida, um afeto teso e tenso, uma amizade povoada de tantas coisas mais.
Criolina e o homem guarda roupa se viram e se sabem, o resto da história apenas os loucos, que nem eles, serão capazes de antever. Podem nunca mais se tocar, podem seguir bêbados, solitários e nus, vida afora. Mas, tem algo que o tempo não apaga e nem ela deixaria. Então, ela retoma a palavra que transborda.
Olhar para essas pedras como parte de você meu amor tomá-las uma a uma e ora brincar de cinco pedrinhas, ora jogá-las para longe e, quando preciso for compor um silêncio: eu, você, as travas, trancas, pedras, com encanto e/ou quebranto. Não importa eu sendo eu, solto teu cabelo e te dou a mão. Infinitos, como novelos esticados, tesos, finos, brancos e cheios de graça.
lindo!
ResponderExcluiras suas palavras dançam (suavemente).
obrigada por dividir conosco seus escritos.
beijos
Criolina e Buiú,
ResponderExcluirandarilhos vestidos e nús que povoam a imaginação de Glória, essa mulher esvoaçante que
como o ar abocanha a vida
e a traça em versos
ternos e in-tensos!!!
Grande texto Glória,
assim como tudo em você seduz e vibra!
Quando vamos ler seus textos literários na integra? Não esqueça que com orelha ou não a gente ouve com prazer seus cânticos de amor e vida!
Amei seu espaço! Um brinde a ele e a você que o faz habitado de entes com asas, latas e nudez! Shara Jane.
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