sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Os quatro elementos ou porque é preciso ir

Era um poço tão profundo que tocava a pele do mundo. Ali, onde tudo era aparentemente plano, superfície intacta, havia furos, rugosidades, entradas e saídas. Um profundo feito de horizontalidades e abismos. Assim como Deus costuma tecer seus mistérios.
Era um poço corrente, com cordilheiras de musgos e vitórias-régias, a entrever o rasgo da luz que saudava a eterna brincadeira de entrar e sair, de mergulhar e boiar, de ser navio, submarino e albatroz."Fica ai que ele te leva correnteza abaixo e te salva", diziam as mulheres aos seus filhos mergulhadores. Era então, que num gesto quase sagrado, eles ouviam e voltavam para salvá-las da terra. Eles sabiam que as mães deveriam ser postas em perigo para terem coragem de ir.Entretanto, o poço não era somente um lugar cujos chamados eram motivos de preocupação para mães e avós. Virar planta pode significar uma forma de não se deixar levar, de desistir de ouvir o chamado dos ventos e das águas andantes. Lá havia também o fogo mais abrasante capaz de aquecer léguas de distância. Água e fogo sem nenhuma utilidade. Assim como o vento que dava movimento a tudo e a terra que o contornava quieta e macia. Nada de preocupação com higiene, limpeza ou fogueira de restos. O poço fazia correr os desejos mais improváveis, impuros e com uma faísca tornava toda a água um poderoso combustível. São belas as coisas sujas, despropositais e perigosas.

Até os viajantes sabiam que o lugar para se experimentar o único, o mistério do sentimento que parecia deixar bravo até mesmo Deus, ficava bem ali, no poço dos quatro elementos. Como não podia ser diferente, os velhos da aldeia contavam diversas lendas sobre ele.

Uma dessas histórias fala sobre um anjo-feiticeiro que havia ganhado asas depois de se apaixonar por uma feiticeira-anjo de olhos grandes e pele quente, cor de amêndoa. A devoção do anjo à feiticeira, e da feiticeira ao anjo, não somente tornou-o humano e com asas, mas deixou também, o humano Deus, conciliado com a sua criação. E no oitavo dia Eros desfez poço e banhou o mundo.Em regozijo, o Senhor tornou o amor dos dois água-terra-fogo e ar, e dispensou o escrevinhador das artes de Memória. Numa “bendição”, por um tempo, tornou atemporal e sagrado aquele amor. De tão bondoso, o Senhor decidiu, por repetidas vezes, soprar os ventos perto das asas do anjo-feirticeiro a fim de devolvê-lo ao seu caminho. Deixou as águas deslizarem para que ele pudesse escorrer. Usou o fogo para atiçar o desejo e lançá-lo em fresta à sua amada. Trouxe, por fim a terra, para que ele aportasse no seu lugar. Nada disso parece ter acordado o anjo-feiticeiro. Por não se sentir merecedor o anjo inventou um Deus bravo, castigador e um amor finito. É por isso, que ele, esse anjo, não consegue sumir, e se encontra perdido entre o seu mundo e outro estranho para ele, mundos fora dele.Ao encarar a promessa de uma nova terra, de um outro amor o anjo foi deixando-se cair; a sensação do vácuo em terras distantes o remetia, de forma insistente, a olhar de longe o seu amor perdido. Apesar de ainda ter asas e possuir corpo de homem-anjo, ele já quase não conserva seu coração-quatro elementos. De tanto querer negar, ir, recusar ficar e aportar o anjo foi perdendo aquilo que tinha de mais sagrado: o amor- cordilheira, o amor-ventania; o amor-combustão, a amor-chão. Ficou apenas um corpo-representação. Porém, há o outro lado da história. Dizem que a feiticeira-anjo percebeu a incessante vontade e generosidade de Deus em criar e re-criar o amor. Por ter esperado o anjo-feiticeiro criar asas, tornar-se homem, abrir mão do seu coração e, em seguida, tê-lo perdido, Deus trouxe para ela um homem que voa e fica. Um homem que ama e ama. Um homem que se sente com asas apenas por ser amado e poder estar ao lado dela. Um homem e uma mulher, ambos alados e enfeitiçados. O anjo-feiticeiro? Virou conto.

3 comentários:

  1. glória,
    belo trabalho. Estou sempre lendo. gosto de sua profundidade embuida ao sentimento. A poesia é isso: viver e sentir.

    abraços

    josé L. Netto

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